As montanhas da Lua,de Samuel Duarte: espaço, tempo e memória nos caminhos de Ariel

Ester Abreu Vieira de Oliveira

Samuel Duarte, nos 60 capítulos, distribuídos em dois volumes, de As montanhas da Lua (Cachoeiro de Itapemirim: Gracal Gráfica Editora, 1982), engendra a personagem Ariel, idealista, imaginativo, íntegro, corajoso, grande leitor, que procura descobrir um enigma de sua existência. Nessa busca esse ser vai captar a sua história ancestral ao mesmo tempo em que amplia, mediante o enigma do tempo, a história da humanidade, do Brasil e, principalmente, do sul do Estado do Espírito Santo. Contudo, sua inquietação não se limita à questão do tempo proustiano da busca pessoal, na memória pessoal, ao contrário, ele amplia o horizonte para o enigma do tempo coletivo, do tempo que gira para olhar o passado, para captar o mistério de sua própria história. Na busca da origem de Ariel, um dos traços do homem e na construção da saga dessa personagem, para fazê-la verossímil, Samuel toma como base a historicidade e o tempo caminhando do século XV ao XX, pois a vida do homem tem início muito antes dele, conforme esclarece Foucault (1): “É sempre em relação a um fundo já começado que o homem pode pensar aquilo que vale para ele como origem”.

Samuel desenvolve a história de uma família portuguesa, os Ignez, que imigraram para o Espírito Santo no século XIX. Mas, entre a história e a ficção, em um tempo fantástico que retrocede e antecipa, vai desenvolvendo de geração a geração quatrocentos anos de história, o que nos faz lembrar a saga dos Buendías de Cem anos de solidão, de García Márquez.

A vida de Ariel, viajante do tempo, pode ficar inserida na temática da “Oração do tempo”de Caetano Veloso, trilha sonora da novela “Vida da gente”: “tempo, tempo, tempo, tempo/compositor de destinos/[...] tempo, tempo, tempo, tempo/Por seres tão inventivo/ E pareceres contínuo/ tempo, tempo, tempo, tempo/ és dos deuses, o mais lindo”, porque entre o historiográfico e a ficção, o real e o fantástico, ou maravilhoso, dentro de um tempo verossímil, Samuel Duarte, como Cromos, que absorve o tempo, magnificamente, rompe com o tempo e o espaço num romance épico-poético, em que o leitor acompanha a angústia de um ser solitário e percebe que é o criador da obra. Samuel, por meio das dúvidas, tristezas e anseios de uma vida, rememora as crises mundiais (econômica, política e social), dá ênfase ao crescimento de Cachoeiro de Itapemirim e lugares circundantes e mostra que a humanidade não aniquila nem sufoca a obra humana, mas a acompanha, pois a vida é uma maré constante entre o existir e memória.

Em cada capítulo uma surpresa, um avançar e retroceder no tempo e no espaço de Ariel, cujo nome decorre de uma leitura de sua mãe da obra Tempestade de Shakespeare. Essa situação climática envolverá a vida de Ariel, no mar ou na terra.

Nas citações de obras e nas intertextualidades, Samuel se vale, pela boca de suas personagens, para demonstrar a força do passar do tempo, e demonstra o seu caudal de leituras. Assim, se o nome da personagem principal provém de uma obra, o mesmo acontece com o título da obra, que foi inspirado no poema “El Dorado” (2), de Edgar Allan Poe, que o leitor encontra citado na p. 81 do 2º volume, na lembrança um pouco destorcida de Ariel. 

Tanto Tempestade como “El Dorado” serão suportes para o desenvolvimento do teor maravilhoso temporal que percorre o livro, na metáfora do tempo, seja nos ciclones atmosféricos e pessoais que o personagem enfrenta, seja na busca de sonhos, que as palavras de Próspero, em Tempestade refletem: “[...] somos feitos de mesmo material que os sonhos e nossa curta vida acaba num sono”.

Na maioria dos capítulos predomina a primeira pessoa, e neles o leitor vai encontrar as experiências diretas e buscas de Ariel, mas, quando ele está ausente, a narrativa se encontra na 3ª pessoa. O romancista consegue criar para o leitor um mundo fictício num mundo real e os limites entre eles não são firmes, mas diáfanos, proporcionando um mundo real completo e consistente, enquanto os mundos fictícios são incompletos, inconsistentes, duvidosos. Não há delimitação de fronteiras entre fictício e não fictício que se desenvolvem ao longo dos variados tempos e se fazem presentes na existência do ser Ariel. Em Confissão (3), Agostinho explica que os tempos, sucessão contínua de instantes individuais, são três: o presente dos fatos passado (memória), o presente dos fatos presentes (visão) e o presente dos fatos futuros (a espera) que existe na alma. Logo, memória e espaço estão dentro do tempo.

Fragmentos do livro Montanhas da Lua

Volume 1 - p.18

Podem me chamar de Ariel; tempos atrás eu acrescentaria: “sem medo de errar”. Se hoje não acrescento é porque já não tenho certeza de mais nada. Nem mesmo por mais absurdo que isso possa parecer, do meu próprio nome.

Devem ser por volta das nove da noite e estou sozinho, sentado à porta da cabocla Delaura, a uns escassos vinte quilômetros de uma cidadezinha chamada São Felipe. Há um temporal se formando no quadrante sul. Eu o espero com uma certa impaciência, porque sei que, com a sua chegada, irei embora. Para aonde? Eis algo que não sei. Porém desconfio que seja para essa terra sem retorno a que chama de Morte.

Volume 2 - p. 140

Em que pese a eles provar que o passado e o futuro careciam de existência, dessa “existência” que é atributo exclusivo do “hoje”, eu acreditava que o passado tinha existência; quanto ao futuro, concordava com eles. Passei então a me refugiar no passado, a não mais tomar conhecimento do presente do futuro. Meu tempo interior, apesar de acelerado, era o único que me interessava. No meu enorme acervo de “vivências”, eu só evocava as primeiras. E delas apenas aquelas vividas em um determinado lugar e espaço. Elas estavam tão associadas a ele que comecei a achar que poderia revivê-las se voltasse àquele “espaço”. Voltar ao passado para mim significava voltar a ser o que eu fora, modificar o meu “vir-a-ser”, ter uma segunda oportunidade na opereta da vida. Pois o tempo me alquebrara o corpo, atenuara meus ímpetos e aniquilara minhas ilusões mais caras. Desejaria, como Yeats, cuspir na cara daquele Tempo que me arrebatara tudo, até a fé em mim mesmo.

Volume 2 - p. 193

Foi aí então que as minhas leituras vieram em meu socorro. Lembrei-me do velho capitão de Conrad, em Tufão, que também notou a queda brusca do barômetro, mas não entendeu nada. “Essa merda está com algum defeito”, dissera. E, como eu, ele, ao ser colhido pelas garras do ciclone, também, não se lembrava das manobras recomendadas para essas eventualidades. “Virar essa joça pra qual lado, Senhor? Já não há mais rumo, nem bússola, nem leme! Essa banheira está se desmanchando aos poucos... “Também pensei naquele Dom Ramiro do Romanceiro Ibérico, quando Violante lhe toma a mão gelada e lhe diz, pensando tratar-se do Bernal Francês: “Bravo estava o mar?” E ele respondeu “Tremendo”. Concluí então que ia morrer bem acompanhado.

Feliz de quem tem, como craveira, como referência, essas leituras do passado. Feliz de quem pode comparar suas experiências com aquelas vividas por outros homens, em idênticas situações. E chega-se à conclusão, pelo fato mesmo de eles haverem-nas contado, de que sobreviveram a elas e que o mesmo pode se dar conosco. E, na pior das hipóteses, se nada dá certo e se a gente morre, morre então com toda a lucidez e entra pelo Outro Lado com a cabeça erguida.

Como o que ia acontecendo com Exupéry, nos anos vinte, bem perto de onde estávamos, quando pilotava um velho Breguet 14 da Latécoère, de Trelew para Comodoro Rivadávia. Ele foi acolhido por um desses ciclones e precisava de mais de duas horas para cobrir um percurso de uns doze quilômetros apenas. [...]

Samuel Machado Duarte (Atílio Vivácqua, ES, 1934) cirurgião dentista, poeta, cronista, contista e romancista, é o 4º ocupante da cadeira nº 05 na Academia Espírito-santense de Letras, cujo patrono é Amâncio Pinto Pereira, é membro efetivo da Academia Cachoeirense de Letras, da Ordem Nacional dos Escritores e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Entre as suas obras estão os romances As montanhas da Lua (1982) e As duas faces de Eros (1995) e O almirante batavo, os livros de poemas O sino submerso e Eu pescador, o livro de contos Taperas & coivaras, o de crônicas Amor de minha terra e a obrahistórico-etimológica O incalistrado - Topônimos capixabas de origem tupi.

Ester Abreu Vieira de Oliveira, professora emérita da UFES, autora de ensaios, crônicas, livros infantis, didáticos, traduções, poesia, memória, atual presidente da Academia Espírito-santense de Letras e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, entre outros.

NOTAS

(1) FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições 70, 1966, p. 368.

(2) Gentil, faceiro,/ um cavaleiro,/ sob sol e sombreado,/ seguiu avante,/ cantarolante,/ em busca do Eldorado./ Mas o andarilho/ ficou tão velho,/ no âmago assombrado,/ por não achar/ nenhum lugar/ assim como Eldorado./ E, enfim diante/ de sombra errante,/ parou, quando esgotado/ e arguiu-lhe “onde”,/ sombra, se esconde/ a terra de Eldorado?”/  “Sobre as montanhas/ da lua e entranhas/ do Vale Mal-assombrado,/ vá com coragem”,/ disse a miragem, “se procuras o Eldorado”.

(3) AGOSTINHO. Confissões. XI, A medição do tempo. XV, 20. Disponível em: https://pt.slideshare.net/glaubermenezes/agostinho-de-hipona-confessioneslivrosxi .

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