O cenário: nossa sociedade, em que os sujeitos se encontram profundamente agenciados e o índice do que tenha ou não qualidade na manifestação artística deixa de ser os aspectos artísticos e filosóficos e se transfere para o seu potencial de entretenimento, e portanto a capacidade da obra reduzir-se a mero objeto mercantil consumível por um lucrativo número de pessoas; em que a “arte culinária” (termo cunhado por Theodor Adorno ao se referir a essa falta de profundidade) domina a percepção e se faz positivamente valorada; na qual, em se tratando do texto ficcional em prosa, logra ser julgado “bom” pela avaliação mediana apenas o enredo cujos códigos de interpretação se fundam na realidade concreta para crismá-la no imaginário. O evento: o recente lançamento pela Secult de O sismo particular, livro de contos de Herbert Farias. O terceiro do autor, desde 2009.
Os 37 contos da obra se inscrevem no insólito, discurso ficcional a respeito de que não se pode afirmar exatamente recuse a realidade concreta, mesmo porque é preciso a contraposição para, mediante o contrataste, instaurar-se o insólito. Sua estratégia é inviabilizar a leitura realística e estruturada na verossimilhança externa, ou seja, o discurso insólito nega o real enquanto modelo que posa para a edificação do texto, esse real fetichizado como uma pin-up. Ao fazer isso, o insólito subverte a lógica racionalista, forçando uma leitura noutras bases.
Herbert não facilita a vida daquele leitor acostumado a uma semântica sem abalos sísmicos, a tramas comportadas. Sob esse aspecto, sua prosa dialoga com a de outros autores capixabas, como Bernadette Lyra (mormente em seus primeiros trabalhos) e Miguel Marvilla (1959-2009), salientando que boa parte da produção contística deste era francamente um exercício poético, ao passo que em Herbert o estranhamento ocorre muito mais pela trama, o que não impede a presença da prosa poética eventual, como em “Nos fones de ouvido do carcereiro, impessoas antilúdicas explodiam crianças e velhos em volume miserável” (No cativeiro), embora estejam nos fenômenos e situações as marcas mais relevantes do insólito em O sismo particular. No primeiro caso temos, por exemplo, A nuvem, em que uma substância química fabricada em laboratório, e pairando sobre uma cidade devido a um acidente, induz os moradores a assassinarem seus desafetos; no segundo quesito, em Memorial do triunfo temos “A caixa que guarda meus charutos épicos são as costelas cristalizadas de um menino de oito anos, cujo pai recusou-se ao pagamento de impostos”.
Em O sismo particular, o percurso textual entre superfície e profundidade é a figura do abismo, uma das constantes do livro. Com relativa economia vocabular, a queda é um dos instrumentos que conduz tramas e personagens a um universo nada simples, bem abstrato e não reificado, mas, apesar disso, profundamente correlato ao real em função das vias simbólicas abertas. Assim, quando Teroxyca, Epílogo incansável e Damião falam de queda, esse abismo fabulado no insólito nos dá de certa maneira a sensação de concretude não apenas porque a vida contemporânea é abissal: é como se, ao estilhaçar o verossímil, dos destroços fosse mostrar-se uma verdade imamente que, perpetrada na ficção, dialogasse com o real por fazer parte de um universo maior, uma grande estrutura de sentimento.