“Minha presença aqui é afetiva e não acadêmica. Nunca frequentei academias, somente aquelas nas quais meus sinceros amigos eram infiltrados. No gênero, gostava mesmo de frequentar bibliotecas, e alguns arquivos, na infância e juventude. Sempre fui um curioso, e não pesquisador ou estudioso. Não sou escritor, mas sempre usei a máquina de escrever para produzir muitas laudas de críticas e crônicas sobre música na imprensa local.
Sérgio Blank foi espirituoso em casar a imagem da máquina de escrever com uma instituição como a Biblioteca e assim criar este projeto. Sim, tudo a ver com a escrita e a leitura. A máquina de escrever por sua vez, ou uma ideia do que poderia ela ser, só surge no início do século XVIII. Bibliotecas surgiram milênios antes de Cristo e máquina de escrever levou quase dois séculos para se firmar como utilitária.
Dezenas de nomes desenvolveram diversos protótipos até chegar à primeira máquina comercial, a Model One, da Remington. E a IBM estabeleceu-se como uma das grandes marcas no ramo das elétricas.
Vale aqui referir-se ao padre Francisco João de Azevedo, natural da Paraíba, que em 1861 apresentou seu modelo de máquina de escrever, ganhando uma medalha de ouro ao expô-la no Rio de Janeiro. Bom também fazer uma referência que os grandes objetivos dos inventores como Pellegrino e Scholes era auxiliar a comunicação de cegos, surdos e mudos. E a preocupação de Malling Hansen era o de facilitar o ingresso feminino no mercado de trabalho no final do século XIX.
De fato, a primeira imagem que temos da prática da datilografia é a feminina. Datilógrafos eram jornalistas, escritores e escrivães. Apenas para pular essa parte, quem não se lembra da notoriedade que Eva Perón alcançou ao se tornar a datilógrafa mais veloz do mundo?
Talvez alguém tenha assistido a um filme francês de 2012 chamado “A datilógrafa”, que bem mostra as relações profissionais, e pessoais, entre uma exímia datilógrafa e seu patrão.
Assim são duas observações de quem faz um depoimento informal e bem aproveitou a Biblioteca Pública Estadual, uma instituição de 164 anos e que, hoje, celebra um episódio na sua rica história: o aniversário da inauguração da sua definitiva sede, oficialmente denominada Biblioteca Púbica Levy Cúrcio da Rocha, a partir de 20 de dezembro de 2004.
Em 1979, eu estava presente na solenidade de inauguração desta nova sede, na qualidade de chefe de promoções da extinta Fundação Cultural do Espírito Santo, ao lado do então diretor presidente Marien Calixte e do ex-governador Élcio Álvares, aliás um dos governadores que mais apoiaram a cultura do Estado, investindo em grandes equipamentos como o Teatro Estúdio, a Galeria Homero Massena, a TV-Educativa e esta sede aqui.
E daqui, pelo então vazio existente de edifícios, deslumbrava-se o mar, e os pilares iniciais da construção da Terceira Ponte. Sem comparações maldosas, mas contingente, podemos vislumbrar e sonhar com a definitiva existência de outro equipamento fundamental para nosso crescimento cultural e artístico: o Cais das Artes, que vive há anos como náufrago ansioso, respirando, sobrevivendo.
Não, a sede da biblioteca não está numa periferia como alguns observadores preferiram localizá-la no instante de sua inauguração. Estamos em bairro nobre onde se localizam 70 por cento do poder do Estado: o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, o Tribunal Eleitoral, além do povo, os operários e os pescadores.
Estamos sobre o mar, aterrado, mas com o espírito navegador, em busca de novas terras; navegar é preciso, ler é preciso, viver, talvez, não seja preciso se não alcançarmos o próximo cais, o Cais das Artes.
Muitos reclamam, e com certa razão, que a instituição biblioteca desde seu surgimento, em 1855, aqui entre nós no Estado, sempre foi relegada a um segundo, terceiro ou inferior plano dentro do quadro de prioridades para um aporte administrativo-financeiro visando a seu desenvolvimento. Mas se vidas humanas são tratadas com certo desdém pelo Estado pela ineficiência gerencial da educação, da segurança pública e da saúde, não há como se espantar com a falta de apreço pelas bibliotecas e sua função maior de formar e conquistar leitores, além de potencializá-los como futuros escritores e, sobretudo, ser o templo sagrado guardião da produção literária, o depositário do pensamento de várias gerações.
Hoje, 14 de março, esta sede completa 40 anos.
A BPES possui em seu acervo três coleções de destaque: a Capixaba ou Espírito Santo, de livros de autores nascidos ou radicados no Estado e cujo tema seja o Espírito Santo, a Coleção Província, com obras raras publicadas desde o século XIX, contendo inclusive exemplares do lote da doação original feita por Braz da Costa Rubim, e, a mais recente, a Coleção José Teixeira de Oliveira, autor de A história do Espírito Santo, com mais de 2.500 títulos, adquirida recentemente em 2007. Tive a honrosa oportunidade em manter pessoalmente os contatos iniciais com a viúva Dona Stella, tratando de aspectos burocráticos e de viabilidade desse precioso legado. Nessa ocasião, em três visitas à residência da viúva, pude deslumbrar a preciosidade de uma biblioteca montada num apartamento de simples três cômodos, com prateleiras suspensas exibindo reluzentes lombadas de livros impecavelmente conservados. Há também as coleções Infantil, Braille e o Acervo Geral, além da hemeroteca, com jornais e revistas diversos.
Tanta coisa só acontece depois que a nossa biblioteca ancorada neste mar do Suá passou por uma grande reforma após sua inauguração em 1979.
Isso aconteceu em 2008, e o acervo foi transferido para o Instituto Braille, na Avenida Beira Mar, e, como toda obra pública, os atrasos se multiplicavam causando embaraços tanto para o público como para a administração que era comandada por Rita Maia, assessorada por Rita Moro.
Hoje podemos constatar as inúmeras melhorias com ganhos de quase o dobro de espaço e modernos equipamentos, inclusive este confortável e bem equipado auditório. E, o que parece, não recebeu ainda um nome à altura de seu valor prático. Este auditório é um aglutinador de ideias, debates, confraternizações, sempre impulsionados com as mais nobres razões que o espírito humano possui. Sempre uma festa, sempre uma comemoração, sempre uma vitória, do livro e do escritor.
Aqui neste auditório, um ano atrás, tive a honra de lançar meu livro O assunto é música, uma coletânea de críticas e crônicas musicais publicadas por mim na imprensa local por cerca de 50 anos.
Hoje, Ana Maria Silva, está no comando dessa instituição desde o ano passado, após uma experiência de nove anos na Biblioteca Municipal de Domingos Martins. Ano passado recebeu o Mérito Cultural Renato Pacheco, prêmio concedido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, além de outros prêmios internacionais de entidades apoiadas pela Fundação Bill e Melinda Gates. Aqui, sobre o mar, a direção ouve os pescadores e os percebe utilizar com naturalidade os espaços da biblioteca. A interação com a comunidade da Praia do Sua é ampliada e fortalecida a cada dia por meio de parcerias com as associações de moradores deste bairro e a de Jesus de Nazareth. Cerca de duas mil pessoas por mês são usuárias desta Biblioteca.
Todas as diretoras que administraram este espaço, Neida Lúcia Moraes, coordenadora da transferência da sede, Marlene Rodrigues, Dayse Muzzi, Nádia Alcure, Eugênia Broseguini, Rita Maia e Ana Silva, sempre o fizeram com lisura e invejável abnegação.
E o que dizer do profundo esquecimento do fato de que, não fosse Brás da Costa Rubim a doar quatrocentos volumes de seu acervo particular para montar a Biblioteca Estadual, há 164 anos, não estaríamos aqui? Não poderia ao menos esta sede denominar-se Brás da Costa Rubim? Suposições, sem querer desmerecer o mérito do escritor Levy Rocha. Isso foi aventado por um renomado escritor, Reinaldo Santos Neves, por sinal, o primeiro escritor residente da Biblioteca Pública.
Entre 2009 e 2013, Santos Neves trabalhou na estruturação e ampliação da Coleção Província, bem como da Coleção José Teixeira de Oliveira, e desenvolveu um projeto de romance em três volumes, intitulado A folha de hera: romance bilíngue, publicado e distribuído gratuitamente entre interessados.
O escritor Pedro J. Nunes, autor de Menino, Vilarejo e outras histórias e A última noite, é o atual escritor residente desta biblioteca, cuja atuação, como o próprio escritor descreve, “é espontânea, nunca assinou seu ponto de entrada e nem assinará seu ponto de saída e orgulha-se de ter como remuneração a cortesia dos que trabalham nesta instituição e o usufruto do silêncio dos átrios desse templo do conhecimento e dos mistérios sondáveis”.
Pedro J. Nunes é escritor residente desta Biblioteca desde 2015. Quando os portões desta sede se abrem ao público nos horários convencionais, qualquer um poderá ser premiado ao encontrar o sorriso aberto de PJ Nunes, para ouvir ou falar sobre o ofício da escrita.
Já manifestei meu afeto por esta instituição, e vem desde criança, quando estudava na Escola Brasileira de Educação e Ensino, na rua Pedro Palácios, na Cidade Alta, e era nossa vizinha a Biblioteca Pública. Como era bom subir silenciosamente as escadas de madeira nobre para deliciar-me com revistas coloridas como o Tico Tico ou livros, instigantes, como Moby Dick ou Pinóquio. O melhor era descer em ruidoso galope provocando a quebra do então e sempre respeitado silêncio.
Aliás quase não havia advertências ou punições. Vim a ver também, quando trabalhei nesta casa entre 1999 e 2003, a gentileza e paciência das bibliotecárias com os seus usuários, como se fossem freiras, irmãs de caridade, tratando com delicadeza das aflitas curiosidades dos leitores, quaisquer que fossem suas idades. Biblioteca, um templo dos mistérios sondáveis, como a descreve o sorridente escritor residente Nunes.
Abnegação maior, sim, está registrada na história desta instituição: entre 1879 e 1880, o então presidente de nossa Província, Eliseu de Souza Martins, já havia demonstrado seu interesse pelas artes e pela cultura ao assinar um decreto autorizando a construção de um teatro público, preocupando-se com o ensino básico e defendendo a causa da instrução popular, aventando a criação em Vitória de um templo consagrado às ciências, às artes e às letras, no qual funcionariam como sacerdotes os concidadãos. Utopia? Em 1882 o presidente Herculano Inglês de Souza designou o ex-presidente para organizar o acervo da nova biblioteca. Não seria ele um escritor residente de então, antecedendo a Neves ou ao Nunes?
Ler é preciso. Viver não é preciso. Comparando a leitura com sexo, talvez o que os diferencie é que o prazer do sexo é momentâneo e, depois, negligente, enquanto a leitura é prazer posterior e constante.
Informa o escritor Pedro J. Nunes que um estudo da Universidade de Michigan chegou à conclusão de que ler aumenta a longevidade, afirmando que o hábito reduziu em 20% os riscos da mortalidade de pessoas que foram acompanhadas pela pesquisa, inclusive de escritores que tiveram sobrevida após diagnóstico de câncer. Isso também faz pensar sobre sorridentes escritores, residentes ou não, pois há os sisudos escritores, residentes ou não.
Vida longa à atual sede da BPES. Sobre o mar aterrado, e como o velho pescador, recolhe em sua rede novos leitores, novos livros, novas esperanças.
E La Nave Va!
Texto do depoimento de Rogério Coimbra por ocasião da comemoração dos 40 anos da sede da BPES, na Praia de Suá, Vitória. Coimbra é autor do artigo "Biblioteca Pública Estadual – Memória Administrativa – 1855- 2005", publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, nº 59, de 2005.