Uma reunião de livraria

 TEXTO
ÁLVARO JOSÉ SILVA
FOTOS
JOAQUIM NUNES E ÁLVARO JOSÉ SILVA

A reportagem sobre o Sabalogos foi feita em 2003 e seria
parte do número 04 da revista Intelecto, então uma
publicação do Departamento de Imprensa Oficial (DIO),
órgão do Governo do Estado. Mas tomava posse uma nova
administração, a direção do DIO foi substituída e, da Secom,
veio a ordem de Intelecto morrer. Pura e simplesmente, parar.
O texto de então é o que está aí abaixo. Na época,
muitos dados foram colhidos em entrevista com
o escritor Renato Pacheco. Ele morreria cerca de
um ano depois, sem ver a matéria. Ela sai agora, cinco
anos depois, atualizada e com algumas correções.
Mas com o mesmo corpo que tinha quando foi feita.
O Sabalogos continua existindo, felizmente, como sempre existiu.

Eles vão chegando aos poucos e silenciosamente. Não se dirigem obrigatoriamente para o mesmo lugar, nem à mesma hora. Param diante de prateleiras de livros, conferem as novidades do estoque, trocam algumas palavras, fazem comentários de valor, mas depois vão se juntando. À volta de uma pequena mesa redonda, ao lado do estilizado café, pegam cadeiras, uma aqui, outra ali, mais uma acolá e, de repente, o grupo está grande. Quase completo. Pode chegar a uma dúzia de pessoas. Quem sabe, até mais.

Trata-se de um sábado. Sempre pouco depois das 10 horas, embora o horário oficial do encontro seja este. O happy hour matutino vai se estender até às 12 horas, talvez passando alguns minutos disso. Ao final – isso nem sempre acontece –, às vezes rola um vinho tinto, dos bons. Pode ser um português. Pode ser um francês. Quem sabe, chileno ou argentino. Cada participante bebe um cálice como se aquilo fossem as despedidas de mais um Sabalogos.

O que é?

O que vem a ser isso? O bancário aposentado do Banco do Brasil João Bonino Moreira, um belo sábado foi à Livraria Logos para procurar por livros de seu interesse. Sentou-se à mesa. Alguns minutos depois, o engenheiro da Escelsa Sérgio Luiz Bichara sentou-se ao seu lado e ficou olhando para ele. Bonino havia acendido um cigarro – fuma até hoje – e o companheiro de mesa chegou a pensar em pedir a ele para apagar. “Se tivesse feito isso eu teria apagado na orelha dele. Não permito essas coisas comigo”, diz o fumante.

Não aconteceu nada disso. Em vez de incidente, nasceu um papo. Começaram a conversar sobre livros, genericamente. Depois de certo tempo, despediram-se e foram embora. Nada tinha sido programado, mas no sábado seguinte houve um novo encontro. E mais outro. Alguns frequentadores da livraria, como Pedro José Nunes, professor; Francisco Grijó, professor; Carlos Wilson Lugon, professor universitário e José Ferreira Neves Neto, juiz federal, somaram-se àquela dupla original nos encontros dos sábados. Como o local das reuniões era a Livraria Logos da avenida Leitão da Silva, o grupo recebeu o nome de Sabalogos. E este nome marca a reunião até os dias atuais.

Quando isso começou? Sérgio Bichara tem provas concretas de que foi bem no início de 1989, embora não se lembre do mês: “No mesmo dia em que quis queimar minha orelha, João comentou sobre um livro (foi aí que a conversa começou), Cristo Parou em Éboli, de Carlo Levi. Lembro-me muito bem de que encomendamos a obra (pra mim, pois João já tinha lido), ao Jorge ‘Ladrão’, gerente da Logos na época. O livro demorou meses para chegar (o que tornou motivo de gozação, sempre que João perguntava sobre ele). Pois bem: a data que consta no livro (que eu coloquei ao comprar) é 17 de fevereiro de 1990. Creio que isto não deixa dúvidas sobre o início do grupo”.

O termo “Sabalogos” foi dado por Renato Pacheco, algum tempo depois, quando ele começou a frequentar a Logos. Não há estatuto, regulamento, coisa alguma. Um conhecido deles, amante de livros, pode ir chegando devagar e se incorporar aos demais. Nem existe uma pauta de assuntos a serem tratados nas reuniões. Muito pelo contrário. Vale de tudo nesse convívio de intelectuais. Até mesmo piadas. Por sinal, Pedro J. Nunes é o rei delas. Contando-as, segundo os demais, com talento, sonoplastia e outros efeitos especiais.

Mas vamos voltar ao início desta história. Chegou-se a comentar que as reuniões teriam parado por algum tempo. Sérgio Bichara discorda veementemente: “Nunca houve este ‘lapso de tempo’. As reuniões jamais deixaram de existir. O que aconteceu foi a saída de Lugon e, pouco tempo depois, a entrada de Sebastião Lyrio, médico, que foi trazido ao grupo por Grijó, pouco tempo antes da vinda de Renato, Luiz Guilherme, Reinaldo, Miguel, Ivan, Ivantir, Victor Biasutti (este, falecido no último dia 05 de setembro). Posso garantir que João Bonino faltou apenas uma vez às nossas reuniões, ocasião que teve que viajar para uma reunião de família”.

Agregou-se mais gente. O professor universitário Ivan Borgo logo se uniria ao grupo. Veio também o procurador geral da República no Espírito Santo Henrique Herkenhoff, o juiz de Direito Getúlio Marcos Oliveira Neves, o advogado Michel Minassa Júnior, o aposentado do Banco do Brasil Victor Biasutti, o engenheiro Carlos Teixeira Campos Júnior, o fiscal do Estado e historiador Fernando Achiamé, o artista gráfico e estatístico Hormízio Santos Muniz. Finalmente, um que já ficou pelo caminho, morto que foi, prematuramente: o professor universitário e ex-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Miguel Depes Tallon (em 19 de abril de 2004, também morreria repentinamente Renato Costa Pacheco).

As reuniões dos sábados sempre foram profícuas. Logo à chegada, os convivas dirigem-se ao café que fica estrategicamente localizado no interior da loja, no setor de leituras e ao pé da escada que leva ao segundo piso. Lá, servem-se à vontade. Repetem quando é da conveniência de cada um deles.

E já chegaram até mesmo a ver lançados livros que nasceram dessa convivência. Um deles é a antologia de contos Mulheres, de Pedro J. Nunes. O outro, O presidente nu, de João Bonino. Há até mesmo um terceiro volume, este versando sobre um insólito tema de “assassinato de gatos”. É que Bonino não gosta desses bichanos e é um abatedor implacável de tantos quantos apareçam à sua frente em qualquer canto da vida. Já tem “assassinados” 38 contabilizados (ou tinha, à época da matéria original). “Se eu fosse piloto de combate marcaria um por um na fuselagem do meu avião”, diz ele.

Mensalmente o grupo se desloca da livraria para um restaurante. É o almoço mensal do Sabalogos. Se o encontro dos sábados tem local certo, o almoço, não. Já foi realizado em diversos restaurantes de Vitória. Hoje em dia está sendo levado a cabo no Spaguetti & Companhia. Até quando, não é possível saber. Todos concordam em apenas um ponto: “trata-se de uma “lauta” comilança, até mesmo com atas lavradas solenemente”. A maioria por Sérgio.

Quais são os participantes mais regulares do Sabalogos? Eles mesmos, os membros efetivos, concordam em que são Sérgio Bichara, José Neves, Pedro J. Nunes, João Bonino, Luiz Guilherme, Reinaldo, Renato Pacheco (raramente faltava e era dos mais animados), Ivan Borgo e Getúlio. As brincadeiras correm soltas. Numa delas, muito comum, diz-se que está chegando a hora da próxima revolução marcada para o Brasil do Século XXI. Bonino, natural do interior do Estado, prepara-se para declarar a independência da República de Santa Teresa, sua terra. “Antes, o nome era escrito Thereza. Depois mudou”, conta ele.

Há de tudo um pouco no Sabalogos. Até mesmo os inevitáveis doidos da reunião, que surgem vez ou outra. O primeiro deles, pretensamente um profundo conhecedor de qualquer assunto colocado em discussão, intromete-se em tudo, fala pelos cotovelos e trata a todos com apaixonada intimidade. O outro, mais novo, sente-se à iminência de ser um escritor consagrado. Já escreveu para todas as editoras brasileiras, enviando textos seus. Recebeu “não” unânime delas, mas não desiste. Por último, ganhou um computador de um empresário que queria incentivá-lo a não escrever mais, pelo menos para ele. Mas continua a frequentar o grupo. Talvez acredite na possibilidade de conseguir talento por osmose.

Os dois são tratados com muita fidalguia. E com uma paciência que chega a impressionar. No dia em que a reportagem foi feita, o proprietário da livraria chegou lá pouco depois de seu início, por volta das 11h40m. Para que o fotógrafo pudesse adiantar o final da reunião com o vinho da despedida, abriu duas garrafas de um bom português, distribuiu os cálices e as fotos foram feitas. Mas ele não dá vinho todo sábado, não. Já dá o espaço e é suficiente. Há uma espécie de revezamento entre os, digamos, “sabaloguistas”, no fornecimento deste nobilíssimo ingrediente de final de festa. E ninguém reclama de ser sua a semana da doação. Muito pelo contrário. Os próprios frequentadores admitem: o Sabalogos é uma espécie de Clube do Bolinha. Além das funcionárias da livraria, que vez ou outra atendem aos membros da confraria em alguma necessidade, não há mulheres por lá. Pelo menos, na qualidade de frequentadoras regulares. Mas o grupo faz questão se destacar os nomes de algumas que às vezes aparecem:

Maria Clara Medeiros Santos Neves - museóloga e casada com Reinaldo Santos Neves; Luciana Campos Pedrosa, cirurgiã dentista; Regina Hees, professora do Departamento de História da Ufes e mãe do jornalista André Hees; e Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa, ex-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Esta, por sinal, chega à Livraria quando a entrevista está terminando: “Estou aqui de passagem. Já tenho que ir embora”, diz ela ao cumprimentar todo mundo e gastar um dedo de conversa aqui, outro ali. O professor Renato Pacheco declara uma preocupação: “Escreva o nome dela completo, certo. Senão ela fica uma fera!” (com certeza, foi a última entrevista que deu com a sua reunião querida como tema).

Um dono feliz

Sílvio Dante Folli, o proprietário da Livraria Logos, não se incomoda com o burburinho de todos os sábados na sua loja da avenida Leitão da Silva (ele tem outros endereços, inclusive alguns em supermercados da Grande Vitória). Gosta muito do que acontece e, geralmente, vai até o Sabalogos para acompanhar os papos do grupo e ver se não está faltando nada. Aliás, justamente por isso, é considerado membro da confraria. Quem sabe, honorário.

Ele diz o que acha dos encontros em sua casa: “Para nós, que temos a profissão de livreiro, a satisfação com isso é muito grande. Conheço algumas dessas pessoas há 37 anos e esse é o significado de uma livraria: um local de encontro e de lazer de quem lê. Tenho consciência de que o cliente sente admiração por isso. Ele tem amor ao livro”.

A reunião já gerou até mesmo um quadro de caricaturas, desenhado por um ex-universitário da FDV e pendurado na parede, em frente ao ponto onde o grupo se reúne. Quadro com moldura e tudo. É cuidado e limpo sempre. Ele institucionaliza a reunião. “Queremos guardar isso por muito tempo”, explica Sílvio, para completar em seguida: “O quadro é a história do Sabalogos.  Precisamos preservar essa imagem”.

Livreiro há 37 anos, Sílvio começou como funcionário da Livraria Capixaba, do Centro, pois sua empresa tem apenas 23 anos. Na Capixaba, conheceu alguns dos frequentadores atuais de sua casa, mas na época havia uma reunião que era feita na Livraria Âncora. Ambas eram próximas e ferrenhas concorrentes. Sílvio teve a ideia de ir conquistando algumas daquelas pessoas para seu endereço de comércio. Foi conseguindo devagar e sempre...

Depois que saiu da Capixaba e montou a empresa atual, incentivou a reunião. E conseguiu ter hoje o endereço desse grupo de intelectuais das mais diversas correntes e profissões. Inclusive, com uma geração nova, que começa a se formar. E que, juntamente com os mais velhos, vai fazendo com que os hábitos, tanto das reuniões quanto da leitura, se tornem perenes.

Eis a relação completa dos participantes do Sabalogos, segundo lista em “versão preliminar”, que consta da “coordenação”. Esta lista vem com nome, telefone comercial, telefone residencial, endereço, e-mail, data de nascimento (daí talvez o fato de as mulheres não fazerem parte do grupo) e nome do cônjuge.

Os participantes

Vamos somente aos nomes, na ordem em que eles aparecem:

Carlos Teixeira de Campos Júnior
Fernando Antônio de Moraes Achiamé
Getúlio Marcos Pereira Neves
Henrique Geaquinto Herkenhoff
Hormízio Santos Muniz
Ivan Borgo
Ivantir A. Borgo
João Bino Moreira (Bonino)
José Ferreira Neves Neto
Luiz Guilherme Santos Neves
Michel Minassa Júnior
Pedro José Nunes
Reinaldo Santos Neves
Renato José Costa Pacheco
Rodolfo Guimarães Neves
Salsa (Luiz Romero)
Sérgio Luiz Bichara
Sílvio Dante Folli
Victor Biasutti
Francisco Grijó
Carlos Wilson Lugon

Na época estava também o de Renato José Costa Pacheco.

Os dois penúltimos não constam da lista oficial em 2003. Mas são membros do Sabalogos. Talvez por isso essa lista seja considerada “versão preliminar”. Por sinal, no pé da página onde estão relacionados os nomes, além desta informação havia uma outra, final: “Favor conferir e completar seus dados para que constem na versão definitiva”. Grijó e Lugon, possivelmente, ainda não haviam atentado para isso no dia da reportagem. Apenas Carlos Wilson Lugon não frequenta mais às reuniões. Grijó, sim.

 

Revista a'angaba - Ano 01 - Número 01 - Setembro de 2008. 

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