GMpJM-27, ou seja,
o Gato Morto por João Moreira n° 27

Luiz Guilherme Santos Neves

(com réplicas de João Bonino Moreira)

Este texto, uma das impagáveis gozações surgidas entre
os membros do Sabalogos, envolve João Bonino Moreira
numa situação folclórica, estabelecido como um
exterminador de gatos na região onde
morava e principalmente em seu quintal.

O livreto foi publicado pelo
Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.

Apresentação

Francisco Aurélio Ribeiro

Conta-se, na ilha, uma história de um certo senhor, respeitável em suas cãs, que tendo-se aposentado pelo BB, outrora instituição bancária que bem remunerava seus funcionários, passou a ocupar seu tempo livre, que não era pouco, com a honrosa missão de exterminar os gatos vadios que atormentam a vida dos ilhéus.

Com o passar do tempo, JM (é claro que todo assassino que se preze não pode expor seu nome por inteiro à execração dos felinófilos) tornou-­se o “Gaticida-mor da Ilha de Vitória”, missão que considera “sublime” (Veja-se a “Primeira e Última Réplica às Cartas do GMpJM n° 27”), e, no seu bairro, imperam o “silêncio e a higiene”.

Como é lei da Física, a cada ação corresponde uma reação, em sentido contrário, e acabam de chegar, do além, duas cartas e um cartão com ilustrações, saídas da pena do 27° gato morto por JM, que imitando Brás Cubas, remete do “Reino dos Gatos Mortos” suas injúrias e imprecações contra os humanos, ou, mais especificamente, contra o “desgatino” Gaticida-mor da ilha de Vitória. Jurando vingança e prometendo-lhe a condenação eterna, GMpJM n° 27, em seu cartão, ilustra os momentos finais de sua rápida passagem pela terra, na tentativa (inútil?) de comover o coração empedernido do infernal Gaticida.

Este humilde escriba, que se digna apresentar ao potencial leitor, em poucas linhas, os fatos que irá ler, a seguir, recolhe-se à sua insignificância, não permitindo que o seu “gato xadrez” circule pelas bandas em que habita o sr. JM. Todavia, suspeita de que a alma do GMpJM n° 27 tenha sido enviada por um famoso “Barbagato”, cuja história foi contada, com muita verve, pelo “Escrivão da Frota”e contista - mor da Ilha de Vitória, o Luiz Guilherme Santos Neves.

Soube, ainda, por fontes fidedignas (dentre as quais se incluem os historiadores Miguel Depes Tallon e Renato Pacheco), que o “Gaticida-mor da Ilha de Vitória” não se intimidou com as imprecações do gato morto e que, em sua faina felinicídea, já registrou o exterminato de quase quarenta dessas infelizes criativas.

Quem tem o seu, que trate de proteger seu gato, pois o perigo ronda e JM não se intimida. Que vivam os cães!

 

Reino dos Gatos Mortos
(num tempo sem data)

Luiz Guilherme Santos Neves

Quem lhe escreve estas mal traçadas linhas é um morto, mais precisamente um gato morto. Não pergunte como isto é possível porque nem tudo que se passa no Reino dos Gatos Mortos pode ser aberto ao conhecimento dos vivos. Limite-se a ler a carta e a ficar ciente do que está previsto para a eterna danação de sua já danada alma.

Aqui no Reino há gatos de todas as mortes: por atropelamento, por velhice, por doença, por dentadas de cães, etc. Mas a maioria dos que chegaram nestes últimos anos, estatisticamente comprovado, foi morta com o uso de cianureto, à moda nazista, espumando sofridamente pela boca sobre uma folha de jornal velho. E o grande culpado pelos envenenamentos é o senhor, seu João Moreira! Veja o meu próprio caso. Ia eu muito desenvolto e feliz pelo jardim da sua malsinada casa, ali em Maruípe, quando deparo um belo e convidativo croquete de salaminho bem debaixo do meu nariz. Movido pela fome ancestral dos gatos nem pensei duas vezes: abri a boca e nhoc! Em menos de dez segundos já senti um gosto acre na língua, que passei pelos bigodes em ânsias de desespero; dois segundos depois, estrebuchava e morria, esvaindo­-me em fezes. Uma morte indigna e miserável, que eu não merecia, seu João, como também não a têm merecido meus outros irmãos de desgraça, alcançados pela sua mão de ferro. Morto, tornei­-me o GMpJM-27, ou seja, o Gato Morto por João Moreira n° 27. E, depois de mim, chegaram aqui ao Reino não sei mais quantos assassinados, trazendo também, ainda fresca na língua, a baba branca do cianureto, sem que, desgraçadamente, se tenha a menor ideia de quando vai acabar essa carnificina, louca e sem sentido. Mas um aviso lhe dou, seu João: o senhor não perde por esperar, porque seu dia chegará! Já está tudo preparado. Antes de ir ao destino que lhe está reservado (que é o Inferno!), sua alma deverá passar, primeiramente, pelo Reino dos Gatos Mortos, onde lhe será armada uma espécie de corredor polonês, daqueles que é costume reservar para gente da índole dos Stalins, dos Bérias, dos Hitlers, dos Pinochets e, sem dúvida, de João Moreira. Neste corredor estaremos lá, os diretamente mortos por sua impiedosa mão e os gatos solidários com nossa triste sina, que, aliás, é a gataria toda aqui do Reino. E fique sabendo que, no corredor, formam-se duas intermináveis filas de gatos entre as quais tem de passar a alma do condenado! Já viu, não é? A Associação dos GMpJM, fundada desde que chegou aqui a alma do terceiro gatinho (que aliás era uma gatinha), despachada antes da hora por suas mãos crudelíssimas, fez questão de aprovar um estatuto leonino (isto é, felino), com apenas dois artigos, mas aclamados à unanimidade: Art. 1°) o objetivo social desta entidade é planejar e pôr em execução as penas que serão impostas à alma do Seu João Moreira. Art. 2°) Revogam-se as disposições em contrário.

Por esta simples amostra o senhor pode muito bem imaginar a cama de gato que lhe está sendo preparada. Há mesmo alguns membros mais exaltados da nossa Associação (eu dentre eles) que estão redigindo um abaixo-assinado ao Nosso Gato-Mestre para que se consiga, de São Pedro, que, sua alma, em vez de ir para o Inferno, que, até agora, é sua verdadeira morada, fique enfim aqui no nosso Reino, sob nossas torturas permanentes! Espumo pela boca (mas desta vez é de sadismo) só de pensar nesta possibilidade! E garanto que lhe daremos um tratamento de causar inveja a Lúcifer! Aí você verá, oh desapiedado ser abominável, com quantos gatos se faz um tamborim!

Há, porém, uma chance (sabemos que remota) de sua desgraçada alma escapar ao nosso corredor de punição, indo baixar diretamente no Inferno: é se você deixar - e deixar logo - de matar mais gatos. Este é o aviso que esta carta lhe quer dar. A escolha é sua, desgraçado! É claro que a escolha resume-se em trocar um inferno por outro, já que fopodipidopô você já está, e inapelavelmente. Mesmo assim, não tenha dúvida de que o inferno de Lúcifer ainda será brinquedo, se comparado com o que lhe estamos preparando, caso nosso abaixo-­assinado seja aceito. Pense no assunto, e até um dia, cão dos cães!

Assinado:
GMpJM-27

PS: Esta carta está sendo datilografada porque no Reino dos Gatos Mortos ainda não chegaram os computadores. A coisa aqui é feia mesmo!

 

Reino dos Gatos Mortos
(num tempo sem data, uma semana depois)

Não era minha intenção voltar a lhe escrever, até porque quanto menos contato houver entre um GMpJM e sua desprezível pessoa, melhor será, já que, além de me poupar do constrangimento pessoal e doloroso de tratar com quem só deve merecer o desprezo de todos os bichanos vivos ou mortos, evita também que sofra eu da conhecida síndrome que liga a vítima ao seu algoz. Todavia, aconteceu um fato recente que não posso deixar de levar ao seu conhecimento, jurando, porém, pelos meus bigodes brancos, que será esta a última vez que lhe dirijo a palavra (nossa próxima “conversinha” será no corredor polonês de que falei na minha última / primeira carta).

O fato ocorrido é o seguinte: o abaixo ­assinado que nosso Gato-Mestre encaminhou a São Pedro rogando para que você, ao invés de ir parar no Inferno, fosse deixado aqui no Reino a fim de purgar seus pecados sob nossas afiadas garras (e já tinha até felino botando as unhas de fora e esmerilhando-as só de contar com o deferimento do pedido), foi lamentavelmente recusado. A alegação para a recusa estribou-se na declaração de que “não obstante a justeza das fortes razões apresentadas, embasadas em lúcida e convincente fundamentação, com substantiva invocação dos mais consuetudinários pressupostos consagrados no Direito Romano, Hetero-ortodoxo e Hamurabiano, universalizados no interesse do Primado da Justiça, o pedido resulta impossível de ser atendido uma vez que o indiciado sr. João Moreira goza de regalias indeclináveis e vitalícias, válidas também na vida extraterrena, DADA SUA ESPECIAL CONDIÇÃO DE FUNCIONÁRIO APOSENTADO DO BANCO DO BRASIL”. E saiba, seu João, que da turma (no mundo dos mortos se chama Trinca) de eméritos julgadores que decidiu o pleito faziam parte jurisconsultos de alta nomeada, especialistas em gatos e nas coisas que lhes dizem respeito, como um tal de Gato Pretti (este por motivos que o próprio nome indica) e outro, de nome *** ( este por força de um defeito moral que tinha na mão, lembrando uma pata de gatinho), os quais, nem com todos estes predicados, tiveram como votar a favor da nossa reivindicação. E eu, seu João, que achava que os privilégios principescos da gente do BB, discriminatórios e antissociais, que datam desde Dom João Charuto, só vigessem na pobre Terra de Santa Cruz! Vejo agora o quanto andava enganado. Mas não pense que com esta decisão sua alma desalmada ficará imune às porradas que vai tomar quando passar pelo nosso corredor polonês, que será o seu caminho afunilado para os tridentes de Mefistófeles! A única diferença é a seguinte: se você continuar matando gato como vem matando, ao arrepio dos mais comezinhos princípios de humanidade, além das porradas já anunciadas, sua alma desgarrada levará também unhadas ferinas e sanguinárias (e fique sabendo que aqui no Reino a alma sangra, sim, senhor); mas se parar com essas atrocidades, indignas de uma criatura que foi batizada sob os sacramentos católicos, apostólicos e romanos, e que ainda recebeu por cima da cabecinha ingênua e rechonchuda o sagrado nome de João (lembre-se que a Igreja tem um Batista, um Evangelista e São João Nepomuceno, que lhe deveriam servir de imitação), sua alma daninha só levará porradas! Porradas das grossas, ulalá! por conseguinte, você decide, João Moreira!

No mais, até breve, cão dos cães (aliás, pode ser bem mais breve do que possa supor sua vã filosofia).

GMpJM nº 27

Dado o seu grande interesse em me conhecer resolvi mostrar os meus bigodes. E resolvi fazê-lo apresentando em cartoon uma série do serial killer, reduzido à minha pessoa, e praticado por sua desapiedada alma de algoz de bichanos.

Espero que diante da sequência dolorosa que as gravuras revelam vocêpossa não só mudar a sua conduta desumana como finalmente saber quem eu sou.
Depois deste miado, que considero final, não voltarei mais, nunca mais jamais, a sua presença.

GMpJM nº 27

PS: Mas fico aguardando sua chegada.

Primeira e última réplica às cartas do GMpJM N° 27

João Bonino Moreira

Dizem os entendidos que difícil (ou penoso) é matar o primeiro. Depois a coisa engrena, torna-se fácil, até hábito.

Encontramos, na classificação dos matadores, três tipos: o matador individual, solitário, que exerce sua função por encomenda, sem odiar a vítima, puro negócio; nada fica a lhe pesar na consciência, pois é um profissional. Existe o matador eventual, que faz a coisa no susto, na improvisação, na base do amadorismo e da paixão do momento; depois se arrepende e passa o resto de sua vida a pedir perdão aos céus. Desses dois tipos temos um ror de estatísticas. Mas o principal matador pertence ao terceiro tipo: é o Estado. E o Estado, que não é besta, não conta nem lista seus crimes, pois não faria estatísticas contra si. Vejam só: o Estado mata quando não fornece merenda escolar, mata quando permite que menores trabalhem 12 horas diárias nos canaviais, mata quando não amplia a rede hospitalar na mesma proporção do aumento da população, mata quando não supre a rede hospitalar existente de medicamentos e profissionais, mata quando não prende os matadores que estão por aí à solta, mata quando não fiscaliza e arrecada corretamente os tributos, sem os quais não há boas estradas, bons hospitais, boas escolas e boa segurança, mata quando privilegia uma feliz minoria em detrimento do povão que paga a conta, e mata quando põe na rua uma força policial despreparada para exercer suas funções.

Todo o blá-blá-blá acima - que parece edital de jornal da oposição - se refere à matança de seres humanos, passível de punição, segundo os códigos. Mas são raros os que se preocupam com isso, uma vez que, estando vivo, o brasileiro tem é que cuidar de sua própria pele para não passar também para o outro lado, para o incerto não sabido e duvidoso endereço do céu, do purgatório ou do inferno.

Agora convenhamos, meus amigos: matar gatos é como matar gente? Qual é o código que diz isso ou prevê punição para os gaticidas? Não há. Então digam-me: quem, como este pobre escriba, já teve a casa invadida por uma horda de gatos, justo na véspera do Natal, que comeram e roubaram meia dúzia de frangos e dois perus que estavam na copa, o molho, aguardando o forno do dia seguinte? Quem, como este pobre escriba, de barba feita, unhas aparadas, dentes escovados, sapatos engraxados, calça e camisa da Missa, pisou em excremento de gato, escorregou e caiu sobre o dito excremento quando saía apressado de casa, já com atraso, para apadrinhar casamento em igreja a 15 km? Quem, como este pobre escriba, admitia contrariado o lenocínio, no momento em que, à sua revelia, a gataria da rua transformava o modesto jardim de sua casa em local de encontros libidinosos, ainda mais quando sabemos que os gatos, ao amarem, fazem uma altissonante propaganda do ato?

Não me restava pois alternativa senão a de eliminar os causadores de tais vexames e parti para extinção da espécie. Tenho até agora um crédito de 37 felinos abatidos. Proporcionei-lhes - não digo indolor - mas morte rápida (15 segundos) e limpa. Os cadáveres, não dispondo nós como os americanos de um cemitério próprio, entreguei-os aos carros da Limpeza Pública, tudo com muita dignidade. Hoje imperam o silêncio e a higiene em meu bairro, graças a esse meu trabalho. Embora existam vizinhos sentimentaloides e outros que se sentem saudosos pela ausência dos bichanos.

E aparece agora um tal de GMpJM n° 27 (tivessem usado esta cabalística sigla no tempo dos Governos Militares iriam com certeza dar com o lombo no DOI-CODI ), através de duas cartas e um cartão acompanhado de gravuras (anexos), augurando e prometendo-me os maiores sofrimentos quando deixar eu este mundo. Tais missivas, que certamente vêm de outra dimensão, pois além de serem assinadas por sociedade de gatos defuntos revelam um conhecimento bem razoável do purgatório e do inferno, me levam a concluir que os reclamantes não estão no céu e que não são tão santos assim. Estarão, isto sim, nos círculos intermediários ou inferiores (consulte Dante, caro leitor), pagando alguma pena. Outra torpeza cometida por essa nefasta quadrilha é a de tentar confundir ou estabelecer identidade entre minha ação saneadora e o famoso “holocausto”, supostamente ocorrido durante a II Guerra Mundial. Assim, deixo registrado que, sendo eu amanhã ou depois assassinado por indivíduo de nome Jacob, Isaac ou David, o crime só poderá ter sido perpetrado por incitação dessa sinistra confraria que se assina GMpJM n° 27.

Feitas as considerações acima, esclareço que não mudei o meu pensamento acerca da questão e que continuarei na minha sublime missão de Gaticida-mor da Ilha de Vitória. Aviso, também, que, quando estiver em New York em dezembro próximo, pretendo assistir na Broadway ao espetáculo “Cats”. E já tenho plano para acabar com o referido musical: no meio da representação atirarei um coquetel “molotov” no palco. Aí a comunidade dos gatos - que deve ter patrocinado o “show” - não torcerá mas sim arrancará os bigodes. Será, é claro, o fim das minhas atividades, pois certamente serei hóspede de uma prisão americana. Mas, em contrapartida, terei entrado para a história, uma vez que o atentado será a consagração de uma profícua carreira (ou vocação?). Alea jacta est.

Disse,

JM.

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