Páginas de uma bibliotecária

Marli Rodrigues Coppo

Prefácio

A Biblioteca Pública Estadual, herdeira da primeira biblioteca pública de que se tem notícia no Espírito no Santo, data de 16 de julho de 1855. Iniciativa de Braz da Costa Rubim (1812-1871), formou seu acervo a partir da doação dos primeiros 400 volumes por ele enviados do Rio de Janeiro.

Quatro anos após, já computava cerca de dois mil volumes. Com o passar dos anos, aumentou consideravelmente o acervo, chegando ao fim do Império com cerca de 1.500 publicações e ao início do Século XX com 5.073, quando os volumes foram organizados em um catálogo geral.

Compreendendo também confortável sala de leitura, assim permaneceu até 1926, quando foi erguido o prédio especialmente destinado a abrigar a Biblioteca e o Arquivo, na Cidade Alta, na Rua Pedro Palácios.

Atualmente localizada em prédio próprio, na Praia do Suá, recentemente restaurado, ali podem ser encontrados clássicos da historiografia capixaba e muitas obras raras, em geral produzidas e/ou localizadas no Espírito Santo. Centenário acervo, importantíssimo e necessário para a reconstrução da memória social capixaba, mas que tem sido vítima de desfalques ao longo dos anos.

Contando com um corpo técnico capaz, zeloso e especializado, esta importante instituição é depositária legal do acervo bibliográfico do Estado e congrega formidável patrimônio histórico, que data de 1650 a 1945.

E não está mais correndo o risco de se transformar em organismo social (leia-se privatização do seu patrimônio), graças ao esforço de seus funcionários, que lutaram pela revisão da medida que poderia colocar em risco a instituição, sobretudo seu patrimônio, que encerra tão importante acervo para a reconstrução da memória social capixaba.

Entre estes funcionários, é de se destacar a exemplar bibliotecária Marli Rodrigues Coppo, que atua na tradicional instituição desde 1984, sobretudo nos projetos “Bibliotecas Comunitárias” e “Carro-Biblioteca”. Iniciativas que permitem o acesso à leitura a comunidades, principalmente as mais carentes e distantes, e, por consequência, o desenvolvimento de sua cidadania.

É um trabalho meritório, de cujo resultado este pequeno texto é uma singela amostra.

Vale a pena ser lido e aplaudido.

Gabriel Augusto de Mello Bittencourt
Presidente da Academia Espírito-Santense de Letras,
ex-professor das Universidades Federais do Espírito Santo e do Rio de Janeiro

 

Introdução

Este trabalho pretende narrar algumas experiências que vivi durante alguns anos nas Bibliotecas Comunitárias de bairros da Grande Vitória, principalmente em Vila Velha e na Serra.

Mesmo com todas as dificuldades e limitações que tive que enfrentar, este trabalho foi se tornando conhecido.

É preciso que se reconheça a leitura como uma condição indispensável ao desenvolvimento social e à realização individual.

A importância das bibliotecas comunitárias

Segundo a Unesco, a liberdade e o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos são valores fundamentais e só poderão ser alcançados quando todos os cidadãos estiverem informados, para assim poderem exercer plenamente seus direitos democráticos e desempenhar seu papel ativo na sociedade.

A Biblioteca deve ser um lugar onde o povo possa se encontrar, trocar ideias, discutir problemas sociais e curiosidades, obter informações essenciais para a cidadania.

Sua implantação nas comunidades é necessária e urgente, pois é uma ferramenta fundamental na batalha que estamos travando no Brasil, uma nação letrada, para transformar vidas e conquistar resultados surpreendentes na chamada “sociedade da informação”. Ainda existem muitas pessoas desinformadas, diante da privação dos direitos de participação.

A existência de uma biblioteca comunitária, que atenda às necessidades de informação, pode minimizar a exclusão social em regiões caracterizadas pela privação da educação, da informação, do lazer e de vários outros fatores considerados essenciais para a qualidade de vida.

O Projeto Bibliotecas Comunitárias

A proposta do Projeto é atender às solicitações das comunidades em seu propósito de implantação de Bibliotecas Comunitárias, tendo como objetivo o acesso à leitura, à pesquisa, à formação da cultura e ao desenvolvimento da cidadania.

A Biblioteca Comunitária atuante em regiões carentes possibilita o acesso da comunidade à leitura, a pesquisas, à formação cultural e ao desenvolvimento da cidadania. A viabilização vem acontecendo com mobilização da sociedade (pessoas físicas).

Isto é necessário, de maneira especial, às crianças, adolescentes e jovens. A existência de espaços destinados à cultura e de fomento à educação destes segmentos cria comunidades mais próximas da realidade.

Justificativa 

A Biblioteca é o lugar para pensar, criar e inovar, modificando conceitos históricos e contribuindo para crescente desenvolvimento.

É somente pela educação e cultivo dos valores fundamentais da pessoa humana que teremos uma sociedade mais justa e fraterna. É somente com educação e promoção da cultura que teremos uma nova cultura, alicerçada na solidariedade e na paz.

A Biblioteca é uma instituição fundamental para o desenvolvimento educacional, cultural e social do país moderno. Não pode ser encarada como simples depósito de livros, mais um espaço de livros, mas sim como um espaço para formação, partilha e cidadania.

A Biblioteca Comunitária é uma iniciativa que também contribui para erradicar a miséria, a fome e a violência.

Objetivos

1 – Propor campanhas de mobilização de toda a sociedade para doação de livros e equipamentos.

2 – Potencializar o voluntário nas comunidades, oferecendo possibilidade de surgimento de projeto concreto.

3 – Necessidades concretas:

3.1 – Livros novos ou usados, das diversas áreas.
3.2 – Livros de referência de pesquisas (enciclopédias, dicionários, atlas, literatura infantojuvenil, literatura nacional e internacional, tanto clássica quanto religiosa).

4 – Destinatários: comunidades carentes, em especial crianças e jovens.

5 – Oferecer às crianças, adolescentes e jovens espaço e oportunidade de leituras, troca de experiências, informações e desenvolvimento da cidadania.

6 – Criar uma sociedade mais justa.

Experiências vivenciadas

Em 1984, fui convidada para atuar como bibliotecária no DEC (Departamento Estadual da Cultura), na Divisão de Cultura Popular, ao lado de vários profissionais de diversas áreas da cultura, como artesanato, teatro, música, etc.

A mim cabia atender às solicitações das comunidades para implantação de Bibliotecas Comunitárias. O principal objetivo do DEC era implantá-las em várias regiões da Grande Vitória, possibilitando o acesso à leitura, à pesquisa, à formação da cultura e ao desenvolvimento da cidadania.

A viabilização acontecia com a sociedade, pessoas físicas, com vários questionários aplicados para saber o desejo destas comunidades, conhecê-las melhor, definir que informação levar.

Eu visitava o Centro Comunitário para arranjar local adequado, mas, na maioria das vezes, o que me apresentavam era uma carência total de infraestrutura.

Itanhenga II, Cariacica

A primeira Biblioteca a ser implantada foi a de Itanhenga II, no município de Cariacica. Era o sonho daquela comunidade ter uma Biblioteca e uma igreja...

E a Biblioteca foi levada em 1985. Eu não tinha carro, ia de ônibus, que circulava muito cheio e eu tinha que disputar lugar com gente e animais, como galinhas, porcos e outros.

O principal objetivo da Biblioteca era propiciar o prazer pela leitura, mas também tinha oficinas e literatura de cordel, que relatava as dificuldades da comunidade, como a falta de luz e de água. Foi feito um livro, que se chamou “Itanhenga em Versos”, e oficinas de teatro, capoeira e artesanato.

Era muito importante este trabalho, porque a comunidade não tinha lazer. Os moradores nunca tinham tido oportunidade de conhecer uma Biblioteca e chegavam a me perguntar se pagava para entrar!

Eu saía na comunidade divulgando os trabalhos oferecidos pela Biblioteca. Muitas das vezes, os moradores solicitavam palestras de assuntos atuais na época, como AIDS e outros.

Às vezes, marcávamos uma palestra, o palestrante prometia e não cumpria. Com o Centro Comunitário cheio de gente, eu improvisava e virava palestrante. Num dia em que falei sobre primeiros socorros, todos se manifestaram, fizeram muitas perguntas e tudo saiu muito bem.

Confesso que era sufoco, mas também era muito legal, apesar das dificuldades! Para mim, como bibliotecária, foi uma experiência muito boa.

Santa Rita, Vila Velha

Depois, fui para a comunidade de Santa Rita, região de mangue do Município de Vila Velha. Lá também fiz várias reuniões – e à noite, porque a maioria das pessoas envolvidas trabalhava de dia. Ouvi muitas reivindicações, foi muito bom ouvir e ver outras pessoas manifestarem seus anseios em relação a uma Biblioteca, o que eu ia trazer, os benefícios que esta comunidade teria.

Eu andava pelo mangue divulgando a implantação da Biblioteca. Explicava que informação era importante para todos, que por meio da leitura aprendemos nossos direitos e deveres como cidadãos e podemos viajar num mundo encantado, que é o da leitura.

A comunidade cedeu o local, as estantes foram feitas de tábuas em cima de lajotas. Eu pintava as tábuas e lajotas, tudo ficava muito bom, com toda simplicidade. O acervo foi composto de doações de terceiros e os livros publicados pelo DEC.

A comunidade participava e dava opinião. No dia da inauguração, foi aquela festa! Com que alegria eu tomava conta daquele espaço ou treinava um voluntário da comunidade!

Andorinhas, Vitória

Depois foi a vez da Comunidade de Andorinhas, no município de Vitória. O trabalho foi muito bom, porque foi abraçado pelo Movimento Comunitário e pelos moradores, o que possibilitou conhecer a experiência que tinha como foco a criação da Biblioteca Comunitária e o incentivo à leitura.

Para abrigar a Biblioteca, a comunidade cedeu espaço e eu atendia a todos os moradores na consulta e na pesquisa, oferecia serviços de empréstimos e atividades de mediação de leitura, oficinas, brincadeiras, exibição de filmes educativos, que a Secretaria de Educação do Estado nos cedia.

A Biblioteca também estava presente em várias atividades, como reuniões com um grupo de assistentes sociais para melhor atender à comunidade na área da saúde.

Eu treinei uma funcionária cedida pela Prefeitura de Vitória para tomar conta da Biblioteca. Aí se deu um fato importante: mais tarde, a funcionária quis voltar a trabalhar na comunidade, a comunidade se mobilizou e fez abaixo-assinado para ela continuar. Marcamos uma audiência com o prefeito, ele viu a importância do trabalho e a autorizou a continuar lá.

Foram criadas Bibliotecas também em Maria Ortiz (Vitória), Cariacica Sede, Barcelona e Carapina (estes dois bairros da Serra), entre outros locais.

Carro-biblioteca

Este foi um dos trabalhos que gostei muito de fazer, gratificante, de grande importância para as comunidades mais distantes, pois, em sua grande maioria, são de baixo poder aquisitivo, o que não lhes permite a compra de livros. Nem que suas crianças e adolescentes se desloquem para ler, estudar e pesquisar nas bibliotecas fora de seu bairro, entre elas a Biblioteca Pública Estadual, situada numa região nobre de Vitória, a Enseada do Suá.

A Biblioteca Pública Estadual, por sua vez, tinha um projeto de ampliação deste tipo de serviço público, com o objetivo de aumentar sua contribuição aos cidadãos, em sua maioria crianças e adolescentes.

Além disto, faz parte da missão de uma Biblioteca Pública Estadual o estímulo, o incentivo e a contribuição à cultura, ao lazer, ao conhecimento e ao saber, por meio das leituras oferecidas à população de forma atraente, facilitada, de bom grado.

Já que havia a dificuldade de locomoção das comunidades até a Biblioteca Pública Estadual, devido ao baixo poder aquisitivo das comunidades circunvizinhas, o projeto do carro-biblioteca veio para inverter este processo: levava leitura de qualidade num veículo Kombi.

O carro, na época, era uma Kombi doada pelo Instituto Nacional do Livro, depois substituída por uma Topic, Besta Kombi, que foi adaptada com estantes e outros itens necessários.

Foi assim que pude constatar o quanto o carro-biblioteca (ou a biblioteca-volante) também provocava nos líderes comunitários a conscientização de que é necessário lutar para implantar suas Bibliotecas Comunitárias.

Objetivos

1 – Introduzir na população a ideia de que, para se progredir, é necessário aprender e, portanto, educar-se.

2 – Difundir os serviços da Biblioteca Pública como meio para atingir objetivos específicos.

3 – Despertar na população o hábito da leitura e o gosto pelos livros.

4 – Incentivar o desenvolvimento de vocação profissional.

5 – Levar às crianças e aos jovens os livros que necessitam para complementação de seus estudos e para recreação.

6 – Educar os jovens e adultos no uso da Biblioteca.

7 – Despertar na comunidade o interesse pelo livro, com circulação gratuita de publicações nos domicílios.

8 – Cooperar com as escolas e professores em seu esforço para satisfazer as necessidades culturais e educacionais dos alunos, proporcionando-lhes os materiais e serviços adequados para seu desenvolvimento individual.

9 – Habituar as crianças a usarem as Bibliotecas desde as primeiras idades, oferecendo-lhes serviços especializados.

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