“Começou a ser observado hoje o dispositivo de lei municipal que proíbe a entrada na cidade de carros a tração bovina, veículos esses que ficam ainda impedidos de transitar nas estradas que a Câmara está construindo nos moldes das rodovias estaduais”. Esse texto introduz matéria publicada no jornal Estadão em 2 de fevereiro de 1930 a respeito da lei municipal nº 219, da prefeitura de Sorocaba, SP, proibindo o tráfego de carros de boi nas modernas rodovias de asfalto bem como nas ruas da cidade. Aparentemente, objetivava a lei proteger o asfalto de uma improvável destruição causada pelo aro de ferro das rodas e os ouvidos dos habitantes da cidade do canto típico dos carros de boi. No entanto, segundo o autor da matéria, a medida escondia a extinção do veículo, substituído por caminhões e carroças (que logo seriam também extintas).
Dei-me conta de que num momento de minha infância o canto dos carros de boi ia se tornando cada vez mais raro. Já não era incomum que corrêssemos à janela ou à calçada para ver um raro carro de boi passando. Mesmo em São José do Calçado, lugar onde as coisas demoram a acontecer, as novas imposições do progresso também terminaram por chegar.
Foi no final da década de 70, ainda me lembro. Víamos a manta negra do asfalto cobrindo as estradas que ligavam o município a Guaçuí, de um lado, e a Bom Jesus do Norte, do outro. Para nós, meninos, o cheiro desconhecido de piche e matéria para bolotas negras feitas na ponta dos dedos. Para meu pai, Zé Benedito, carreiro, motivo dos olhos tristes de quem sabe que o fim do veículo com que ganhou a vida e sustentou a família se avizinhava.
“Ainda resistimos algum tempo. Havia uns grotões aonde o progresso não chegava. Ali ainda era o nosso lugar”, lembra meu pai, segurando na mão um copo de café fumegante, os olhos baços de quem lamenta o avanço do tempo.
Foi inevitável. Lembra o carreiro Carrim Nunes, irmão mais novo de Zé Benedito, que a proibição oficial de tráfego nas novas estradas ocorreu logo que as estradas ficaram prontas. A proibição de tráfego pelas ruas da cidade não demorou. “Pra mim foi coisa de um juiz arbitrário que havia aqui. O carro de boi só podia passar se não cantasse”, ri com triste ironia Carrim Nunes, lembrando ser impossível a um carro de boi não cantar e que carro de boi sem canto não tem graça.
Zé Benedito, de quem se disse haver nascido num carro de boi, desistiu, afinal. Logo no início da década de 70 vendeu o carro, os bois e o resto. “Foi como se tudo tivesse sido engolido por um vendaval”.
Há pouco mais de uma dezena de anos, no entanto, Zé Benedito, agora um pequeno produtor de café e gado, pôde recuperar partes de seu carro de boi original. E foi como se recuperasse o fôlego da antiga vida de carreiro. “Depois que comprei meu antigo carro de boi, foi como se voltasse no tempo. Hoje tenho seis, e levo todos comigo no fim dos dias”, fala ele todo orgulhoso de seu ofício de carreiro, como se o paraíso fosse carrear seus bois pela eternidade.
Graças a Zé Benedito e seus amigos carreiros, hoje ainda se pode viajar no tempo em São José do Calçado, onde as coisas demoram a acontecer. Lá, em setembro, como num pedido de desculpas, a história dá um passo atrás e cede lugar à antiga tradição dos carros de boi, veículo que desde o Brasil colonial carregou nossa boa – e má – história. Vinte, trinta carros de boi, carretões, carroças e zorras, saindo do sítio de Zé Benedito, se dirigem à cidade e desfilam pelas ruas conduzidos por orgulhosos carreiros de todas as idades, todos eles trazendo no peito o saber de quem sabe o que representam para a história.
Quando se pergunta se um dia desistirão do carro de boi, respondem num coro com Zé Benedito, carreiro: “Quando morrer”.
- Supõe-se que o boi foi domesticado há pelo menos 6.000 mil anos. O gado era mantido para produzir leite, carne, couro e servir de meio de transporte. No Brasil o boi e o carro de boi foram utilizados desde os primeiros tempos da colonização. O carro era utilizado tanto para transporte de pessoas, principalmente de escravos para a lavoura, quanto para o transporte de cargas.
- Carretão é um carro de boi próprio para puxar madeira. Em vez da mesa típica, apenas um pesado e resistente pedaço de madeira (croca) é apoiado sobre as rodas e ligado ao cabeçalho, onde se cangam os bois chamados “bois de coice”. Ao carretão se cangam quantas juntas de bois (dois bois compõem uma junta) forem necessárias para puxar a carga. Há relatos de 50 juntas de bois para puxar toras.
- A zorra é um grande pau em forquilha sobre o qual se prega um tablado. Não possui rodas. Na ponta do pau prende-se a corrente de ferro ligada à canga dos bois de coice, permitindo-se dessa forma ser arrastada para seu destino. Indicada para carregar cargas a pequena distância, a zorra ainda é utilizada em locais de difícil acesso para transporte da produção agrícola.
- Uma viagem de São José do Calçado a Bom Jesus do Norte, distantes treze quilômetros, poderia durar dois dias para ida e volta, dependendo da carga. Um carro de boi é capaz de carregar uma tonelada e meia de carga, o equivalente a vinte e cinco sacos de café. No princípio, mesmo os caminhões mais rudimentares poderiam transportar carga superior em muito menos tempo.
- A Festa do Carro de Boi acontece no dia 7 de setembro, em São José do Calçado, por decreto municipal. O carreiro líder da festa é José Benedito Nunes (Zé Benedito). É em seu sítio, a pouco mais de um quilômetro da cidade, que se concentram os carros de boi para o desfile, e para onde retornam após percorrerem várias ruas da cidade.
Texto originalmente publicado no caderno Pensar de A Gazeta, em 19.09.11.