A guinada de 180º na pesquisa do folclore capixaba

Luiz Guilherme Santos Neves

A cena dura oito minutos e meio e começa aos 54,16 minutos do filme A morte de um caixeiro viajante (Death of a salesman), produzido pela Columbia Pictures em 1949. A direção é de Laslo Benedek tendo Frederick March representando estupendamente o caixeiro-viajante Willy Loman, e o filme se baseia na peça teatral homônima do consagrado Arthur Miller. 

Willy, vendedor sessentão e cansado de ir de Nova York, onde morava, até Boston, onde realizava suas vendas, entra no escritório do seu chefe, Howard, não só para comunicar a decisão de não ir mais a Boston, como também para pleitear aumento salarial. O chefe, filho do dono da empresa que fora grande amigo de Willy, está absorvido na audição de um gravador Webster Chicago, novidade na época. Com ar de encantamento, escuta uma prosaica gravação familiar de sua filhinha cantando. É neste momento que Willy, com disfarçado espanto, conhece o gravador (a que ambos chamam machine) cujas qualidades de sonoridade são apregoadas por Howard a ponto de não deixar Willy dizer o que o levara até ali. Quando, depois de algum tempo o gravador é desligado, Willy Loman tem a oportunidade de expor suas pretensões que, com indiferença e menosprezo, são rechaçadas por Howard que ainda deixa claro que o subordinado tem de se contentar em cobrir a “praça” de Boston onde envelheceu no exercício da profissão. Durante todo o transcorrer da cena, que cresce em dramaticidade, o gravador Webster é focalizado várias vezes como terceiro figurante e símbolo da chegada de um novo tempo com uma guinada de valores que se ilustra na contraposição de atitudes entre o “novo” Howard e o “velho” Willy. De notar que esta é uma das “leituras“ possíveis para o lance antológico.

Foi também em 1949, ano da produção do filme, que se deu a primeira gravação de um folguedo do folclore capixaba em aparelho Webster Chicago de fio imantando. O pioneirismo da gravação coube à Marujada São Paulo do morro dos Alagoanos, de Vitória, e ocorreu nos estúdios da Rádio Espírito Santo, PRI-9, A Voz de Canaã. A iniciativa foi da Subcomissão Espírito-santense de Folclore, presidida pelo folclorista Guilherme Santos Neves.

O ineditismo da gravação foi objeto de singelo registro, feito também por Guilherme Santos Neves, ao enumerar, no boletim FOLCLORE nº 3, dos meses de novembro/dezembro de 1949, as principais atividades desenvolvidas pela Subcomissão: “6ª: a gravação em fio, de ‘toda a parte de mouros’ da Marujada – (1 hora e 40 minutos) excluídas as repetições.”

Vale acentuar que o boletim, que perdurou durante 95 números com o principal propósito de documentar o folclore capixaba, tinha o formato de revista, como se vê pela capa do exemplar abaixo (nº 92):

A expressão “toda a parte de mouros”, da informação antes mencionada, reporta-se apenas a um episódio da Marujada que por si só durava horas e se iniciava com as seguintes sextilhas precedendo alongada cantoria:

Entremos nesta nobre barca,
Nesta nobre barca,
Com muita veneração.
Louvores vinhemos dar,
Vinhemos dar,
À Virgem da Conceição.

Entremos nesta nobre barca,
Nesta nobre barca,
Com muita chibanceria. (sic)
Louvores vinhemos dar,
Vinhemos dar,
A Jesus, filho de Maria...

A Marujada do morro dos Alagoanos, tanto quanto o Alardo de São Mateus, constituiu uma das dramatizações populares que o Espírito Santo recebeu da longa dominação moura na Península Ibérica durante a Baixa Idade Média. 

Em ambos os folguedos, o fio do enredo remete aos embates entre cristãos e mouros que terminam com a derrota desses últimos, convertidos pelo batismo ao Cristianismo. Mas há entre os dois autos duas diferenças marcantes: o Alardo é um entrechoque épico entre fieis e infiéis que se passa em terra tendo por polo a disputa pela imagem de São Sebastião; de sua parte, a Marujada é a simulação de um confronto naval cujas peripécias se desenvolvem no convés de uma embarcação (chamada Cruzador São Paulo), montada em terra, e tendo São Benedito como tema-núcleo da disputa. 

Depois que o episódio dos mouros foi gravado na Rádio Espírito Santo, foi levado à cena no Parque Moscoso, nas festividades comemorativas da fundação da cidade de Vitória.

Foi exibição de gala sob o comando do mestre José Pedro Lino. No boletim FOLCLORE referente aos meses de setembro e outubro de 1949, lê-se a seguinte informação: “A festa foi dramatizada no Parque Moscoso, sobre um ‘barco’ especialmente construído para a representação [a parte de mouros da Marujada]. Todas as cenas do episódio dos mouros e cristãos foram acompanhadas com vivo interesse pela grande assistência que ali se comprimia e que, durante as 3 ou 4 horas da representação, aplaudia frequentemente cada uma das marchas entoadas, as cenas de embaixadas de mouros...”

Tendo conhecido o gravador na Rádio Espírito Santo (e diferentemente de Willy Loman quando, na cena do filme se espantou com o que viu), Guilherme Santos Neves mergulhou de coração e alma no novo conhecimento adquirindo, em 1951, um desses aparelhos para a Comissão Espírito-santense de Folclore (já não era mais subcomissão).

A partir daí, as gravações folclóricas se sucederam em pesquisas de campo que marcaram uma guinada de 180º no que o pesquisador-folclorista vinha fazendo até então. Uma enfiada de manifestações populares foi registrada com o aparelho Webster – talvez o modelo de gravador que mais tenha se popularizado em vários países por volta dos anos 49/50 – e que, a serviço da Comissão Espírito-santense, se fez duplamente guardião e porta-voz do folclore capixaba.  

Tratava-se de equipamento semelhante a uma maleta de mão com cerca de 60 a 70 centímetros de comprimento de fácil transporte e manuseio.

Sua tampa era retirável durante as gravações e tinha por função cobrir a plataforma com os componentes do aparelho dentre os quais uma bateira. A gravação se processava entre dois carretéis, um removível e o outro não, e durante sua realização o fio fluía do carretel removível para o outro, maior, que era o polo que registrava o som. Completada a gravação, era necessário rebobinar o carretel removível para disponibilizá-lo para as audições desejadas.

No programa radiofônico “Penedo vai, Penedo vem”, que Guilherme Santos Neves manteve semanalmente na Rádio Espírito Santo todas as quintas-feiras às 20 horas, o gravador da Comissão se fez presente divulgando cantigas de roda em fio corredio.  Era o próprio folclorista que manejava o aparelho que se tornou instrumento indispensável de trabalho para quem o também folclorista Renato Pacheco chamava Mestre Guilherme, num tratamento respeitoso que legitima o tom afetivo-filial com que escrevo este texto.

A partir da utilização do gravador se consolida o método de trabalho de Guilherme Santos Neves em suas pesquisas de campo, desdobrando-se nas seguintes etapas: gravação + fotografia + transcrição dos carretéis gravados + revelação e cópia das fotos (em geral a cargo de Hugo Musso) + análise do material obtido + elaboração do texto final com as achegas do seu conhecimento erudito + divulgação do trabalho finalizado. Mais do que nunca se fez trabalho de abnegação constante para quem tinha a convicção de que o chão da pesquisa folclórica era terra santa numa comparação que remete ao verso da bela canção católica Desamarrem as Sandálias.

O farto e precioso documentário recolhido por Guilherme Santos Neves e suas gravações vem de ser posto agora à disposição do público no site Registros Sonoros do Folclore no Espírito Santo – Acervo Guilherme Santos Neves (acesse aqui), com mais de 16 horas de áudio digitalizados.  Sua realização se deve ao Instituto Goia (1), com produção da Pique-Bandeira Filmes (2), e apoio da Secretaria da Cultura (Secult) e Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, do Governo Federal, por meio do Edital Memória e Diversidade Cultural, da Lei Aldir Blanc.        

A descoberta do acervo deu-se por acaso pelo pesquisador e cineasta Vitor Graize que, estudando os arquivos de Ramon Alvarado, se deparou, nas anotações do cineasta capixaba, com referências aos filmes de folclore feitos por Guilherme Santos Neves.

Estava aberta a comporta que levou ao filão farto das gravações que deram origem ao projeto dos Registros Sonoros em que Vitor Graize contou, dentre outros, com a colaboração da pesquisadora Luana Cabral.

Todo um longo caminho de recuperação técnica do material “descoberto” teve de ser perseverante e meticulosamente percorrido até tornar o documentário oral em condições de perfeita audição, reunindo um acervo composto por cerca de cinquenta e nove fitas.

A audição das gravações, quer pelos estudiosos do folclore capixaba, quer por todos os que se interessem por aspectos etnológicos da história do Espírito Santo, vale como experiência de conhecimento que tem tudo para confirmar que o chão do folclore é realmente terra santa para quem, como Guilherme Santos Neves, soube pisar com leveza apostólica. 

Por tão nobre missão ressoa-me nos tímpanos da memória o coro dos marujos em seu canto de saudação:

Com muita chibanceria
Louvores vinhemos dar,
Vinhemos dar. 


(1) O Instituto GOIA é uma associação sem fins econômicos cujo principal objetivo é a preservação e proteção do patrimônio histórico, artístico, cultural e ambiental, especialmente por meio de cursos de qualificação e atualização profissional, obras de conservação e restauro de patrimônio cultural, além da promoção e organização de estudos, pesquisas, eventos, oficinas e demais atividades culturais voltadas ao desenvolvimento de projetos de cunho educativo e social.

(2) A Pique-Bandeira Filmes é  uma produtora e distribuidora de conteúdo audiovisual fundada em Vitória. Seu objetivo é a produção e distribuição de projetos autorais para os segmentos de cinema, TV, streaming e outros. Em 2017, a produtora criou o selo Acervo Capixaba, por meio do qual realiza projetos de pesquisa, preservação e difusão de obras raras do cinema produzido no Espírito Santo.

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