O tapete voador

Das coisas boas dos tempos de criança a tia que me contava histórias é uma das melhores lembranças.

Tive uma vida agitada, morei em vários lugares e até os nove anos não criei raízes ou aqueles muitos amigos de infância.

Voltando à tia querida... Na ocasião, quando me dei conta da minha existência, estava com sete anos de idade e morava em Santa Catarina na casa dos meus avós maternos; passava a manhã na escola das freiras católicas – todos sabiam disso – e tinha as tardes livres para ir aonde só o capeta sabia, mas antes de sair precisava cumprir com as obrigações, claro. Se não fizesse o dever de casa minha avó me pegava pelas orelhas e me deixava de castigo até terminar a coisa. Mesmo diante de ameaças eu não resistia ao chamado da rua e fugia, quase sempre sem completar a lição, o que levava minha avó ao desatino de me perseguir pelas ruas do bairro, aos gritos, tentando me alvejar com seus chinelos – naquele tempo eles eram de couro e doíam quando atingiam o alvo. Quando a conseguia despistar – não era fácil –, passava da corrida ao trote alegre, igual a um cusco vadio de cidade pequena; sempre acompanhado do primo Chico, do irmãozinho Hique, então com três anos e, eventualmente, de mais um ou dois amigos. A matilha percorria as ruas sem destino ou objetivo. Não foram poucas as oportunidades de nos metermos em encrencas – aproveitamos cada uma delas –, das quais costumávamos nos safar por conta da pequenez da cidade; todos ali se conheciam e bem sabiam de quem eram aqueles meninos.

Numa dessas aventuras, destemidos, resolvemos ir de bicicleta até a praia, distante 21 quilômetros da cidade. Aquela magrela transformou-se em uma máquina mágica que nos levaria a qualquer lugar do planeta. Balão voador, submarino atômico, tapete mágico eram coisas que habitavam nossas cacholas. Então, quatro moleques – o mais velho com oito anos – nos revezávamos sobre uma bicicleta; um no cano, outro no bagageiro, mais o que pedalava, enquanto o quarto corria atrás. Depois de algum tempo o que corria pulava para o bagageiro, o do bagageiro passava a pedalar, etc; assim, nos lançamos em direção à conquista de Camboriú, que não deu em outra coisa além de uma exaustão absoluta que nos impedia de tentar, pelos mesmos 21 quilômetros morro acima e morro abaixo, a jornada de volta ao lar. Senti saudades da minha avó.

Naquele tempo – 1960 – não existia telefone e algo que lembrasse um celular só o Dick Tracy tinha (procurem no Google). Pouco antes de bater o desespero, na iminência de passarmos a noite na varanda de uma casa de praia fechada, apareceu um taxista conhecido do meu tio, ou de meu avô, não lembro, que perguntou: o que vocês estão fazendo aqui? Resumindo: nos resgatou, a nós e à bicicleta. Pura sorte.

Voltando à tia querida... À noite, depois do banho, do jantar, na hora da cama, chegava o momento mais esperado da jornada, quando ela nos contava histórias a partir da leitura de um livro mágico, do qual custei a saber o título, seja porque não tinha idade para me interessar, porque não era importante saber, ou porque ela fizesse algum tipo de mistério. Mas a verdade é que só descobri isso anos depois, quando minha tia não me contava mais histórias e a casa dos meus avós deixara de existir.

Aquela infinidade de histórias saía do livro As mil e uma noites. Na verdade descobri que não era apenas um livro, mas vários volumes. Não descansei até conhecer o título de cada uma, quais a tia havia contado, quantas ainda não conhecia – a maior parte.

Em homenagem à tia querida tive a pachorra de procurar, coligir, corrigir e editar em português mais atualizado para o leitor incauto desta crônica a coleção completa dos títulos. Aí vão: O mercador e o Ifrit; O pescador e o Ifrit; O carregador e as jovens; A jovem espostejada; O belo Hassan Badredin; O corcunda, o alfaiate, o corretor cristão, o intendente e o médico judeu; História de Doce-Amiga; Ghanem, o escravo do amor; O Rei Omar An-Neman e seus dois filhos maravilhosos; História encantadora dos animais e dos pássaros; Ali Ben-Bakkar e a bela Chamsen-Nahar; A princesa Budur; Feliz-Belo e Feliz-Bela; História de Abu-Chamat; A Douta Simpatia; As aventuras do poeta Abu-Nauás; Simbá, o marujo; A bela Zumurrud e Auchar, o filho de Majd; As seis adolescentes de cores diferentes; A cidade de bronze; Ibn Al-Mansur com as quatro adolescentes; Wardan, o açougueiro, e a filha do vizir; A rainha Yamlika, princesa subterrânea; O canteiro florido do espírito e o jardim da galanteria; O estranho Califa; História de Rosa-no-Cálice; História mágica do cavalo de ébano; História de Dalila-a-Astuta; Juder, o pescador ou o saco encantado; Abu-Kir e Abu-Sir; Os três desejos; Abdalah da terra e Abdalah do mar; O moço amarelo; Flor-de-Romã e Sorriso-de-Lua; A noite de inverno de Ishak de Mossul; O Felá do Egito e seu filhos brancos; História de Califa, o pobre; As aventuras de Hassan Al-Bassri e de Esplendor; O divã das pessoas alegres e incongruentes; História do dormente acordado; Os amores de Zein Al-Mawassif; O jovem Nur e a franca heroica; Aladim e a lâmpada mágica; O jovem mole; As sessões da generosidade e da cortesia; O espelho das virgens; A parábola da verdadeira ciência da vida; Farizada, a do sorriso de rosa; Kamar e a esperta Halima; A perna de carneiro; As chaves do destino; O divã das facécias fáceis e da alegre sabedoria; A princesa Nurenahar e a bela gênio; O Feixe-de-Pérolas; As duas vidas do sultão Mahmud; O tesouro sem fundo; História complicada do adulterino simpático; Palavras sob as 99 cabeças cortadas; A malícia das esposas; Ali Babá e os quarenta ladrões; Os encontros de Ar-Rachid sobre a ponte de Bagdá; Princesa Suleika; As sessões encantadoras da jovem ociosa; O livro mágico; História esplêndida do príncipe Diamante; Algumas tolices e teorias do Mestre das Divisas e dos Risos; A jovem obra-prima-dos-corações, tenente das aves; Baibars e os capitães de polícia; A rosa marinha e a adolescente da China; O bolo desfiado com mel-de-abelhas e a esposa calamitosa do Remendão; As trapeiras do Saber e da História; O fim de Jáfar e dos barmecidas; A terna história do Príncipe Jasmim e da Princesa Amêndoa. Encantador, não é mesmo? Aproveitem!

Mais de cinquenta anos depois, para pedir uma opinião, chega o amigo com os originais do seu próximo livro debaixo do braço. O título O tapete de Zezé passou pelas minhas retinas, direto ao cérebro, libertando num instante o turbilhão de sentimentos misturados às lembranças. Eu ainda nem sabia do que se tratava, que tapete seria aquele, mas algo me levou de volta à minha tia, ao tapete mágico da voz transformada em histórias narradas para o menino curioso, perplexo com a aventura das palavras nas inesquecíveis noites da infância.

O surto premonitório confirmou-se. O tapete de Zezé, que Pedro J. Nunes estende à frente do leitor, nos conta do descobrimento da palavra pela criança, da viagem de encontro à aventura por meio da leitura dos clássicos: Os contos de Grim, Os contos de Andersen, Monteiro Lobato e mais, muito mais. Para mim é um livro especial, porque liberador de uma memória preciosa há muito encerrada nas voltas que o tempo deu.

O tapete de Zezé, de Pedro J. Nunes – editora Arte da Cura, 36 páginas, com ilustrações de Frederico Leão – é um livro fabuloso.

 

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