Lembranças de meu pai

A primeira caminhada da manhã acabava na padaria, um casarão amarelo de portas altas. Ali eram assados os pães que a vila saboreava com os bules de café novo em cima das mesas.

Eles fabricavam um pão chamado “mimoso”, macio e muito branco onde a manteiga se esparramava na quentura da massa. Comer aqueles pães era a primeira sensação agradável das manhãs, especialmente daqueles dias frios, porque logo vinha do estômago um calor muito bom.

Só depois é que se acordava para o dia, para o sol, para o trabalho e para a escola. No entanto, ele já estava lá na oficina havia muito tempo. Sempre. A que horas acordava? Com a madrugada?

E este sempre foi um mistério de minha infância. Jamais o tinha visto deitado na cama pela manhã. Acordava e colocava para funcionar o engenho, as serras e os martelos que sacudiam a vila com uma vigorosa manifestação de vida. Na oficina empoeirada, com um colete preto, um chapéu de feltro na cabeça e um lápis de carpinteiro atrás da orelha, ele era tão certo e exato como o nascer do sol.

A primeira ideia de gratidão para com ele surgiu exatamente quando consegui estabelecer uma relação de causa e efeito entre o pão gostoso que eu comia todas as manhãs e a sua presença na oficina ao lado de nossa casa. Aquelas batidas nos pregos e as plainas escorregando por cima das madeiras iriam se transformar naquele alimento bom que me era dado diariamente.

Mas essas eram conclusões que eu tinha de tirar por minha conta, porque ele nunca tivera qualquer atitude que insinuasse isso. Aliás, além de não insinuar nada sobre algo como sacrifício para sustentar a família, ele falava muito pouco sobre qualquer assunto. Calado e seco para comigo enquanto criança, embora um pouco mais tarde eu tivesse descoberto em seu olhar um permanente traço de ternura. Custei a entender como aquele homem muito forte, de mãos grandes e calosas e braços musculosos jamais me tinha tocado para me castigar, e isso num tempo em que era comum esse tipo de procedimento. Seco e calado, mas com aquele traço de ternura nos olhos que ele não conseguia exteriorizar para mim enquanto criança, principalmente porque era na verdade um tímido que não sabia usar bem as palavras. Além daquela sua expressão quase imperceptível no olhar, o verdadeiro modo que ele tinha de manifestar sua ternura por todos nós era produzindo coisas em sua oficina.

Pelo menos enquanto era mais jovem, aquela sua timidez não o deixava muito à vontade na relação com outras pessoas, embora ninguém – digo ninguém, e repito com ênfase -, ninguém depois de pouco tempo de convivência com ele deixasse de ser tocado pela energia da solidariedade que o envolvia como um halo permanente. E por isso mesmo, sempre tendo sido um tímido e humilde, formou uma legião de amigos que nos fazem ter a certeza de que nossos irmãos neste lado do mundo sabem e sentem que o amor conduz realmente a uma espécie de ômega de Chardin, noção que ele não podia alcançar sob um ponto de vista intelectual, mas cuja aplicação prática encontrou nele um agente muito ativo.

Atônitos, perplexos e até mesmo com um pouco de revolta, assistimos aos seus sofrimentos que se prolongaram por vários anos, até que no outro dia ele morreu.

Antes de sair de sua casa para o hospital, de onde não retornaria mais, ele me pediu que colocasse no gravador uma fita com canções que lhe lembravam a sua infância, a capela onde rezavam as ladainhas e toda a paisagem campestre com os bichos e as árvores que foram suas companheiras enquanto ele ainda era um pequeno lavrador. Ficou ouvindo durante muito tempo e vi lágrimas em seus olhos.

Estou escrevendo agora sem saber muito bem o que quero falar nestes primeiros dias em que não estou podendo mais contar com ele, com o meu pai. Neste dia de finados.

Em 02 de novembro de 1973.

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