Veneza, sempre

Jamais imaginei tal possibilidade. No entanto havia, palpável, uma atemorizante modéstia, uma presença que evita se impor. Ao contrário, esconde-se nesses neons de cores vermelhas e azuis pretensamente indicando albergues e hotéis ao longo de Canarreggio. Na realidade tentando minimizar a beleza que se debruça nos palácios da borda do canal e cai sobre seu destino como sentença irrecorrível. Uma cidade cansada da própria beleza e em decadência há mais de quatrocentos anos. Uma agonia se expandido sobre o próprio mar Adriático, que exibe águas cinzentas neste por de sol quadricentenário espalhado sobre os escombros de uma beleza imorredoura. Não há possibilidade de morte e, por isso, Veneza chora sua indesejada imortalidade.

Assim, apesar de tudo, quando o Adriático invade a piazza San Marco a cidade se arma de grandes haustos de ar para preparar a apoteose do suspiro mortal que (espera) será ouvido até nas cumeeiras dos Alpes. As águas vão cobrindo seu corpo e a cidade se enche de esperança. A retirada ruidosa das mesas e cadeiras do Harry's e do Caffe Quadri soam como música acompanhando as pequenas ondas de mar que vão se aninhando em suas vielas, em seus rii. Horas mais tarde, no entanto, as águas vão embora, as mesas dos cafés retornam a seus lugares, as pessoas voltam a se sentar nelas e pedem champanhe, conhaque, pernod, vinhos suaves, chás e música. Uma revoada de manequins de revistas internacionais com suas roupas de trabalho, isto é, longos, peles e piteiras, retornam à base (o bar) depois de, como ávidas abelhas, sugarem o néctar das pontes e vielas dos mais esconsos lugares desta cidade esquecida pelo tempo. O violino fende o ar com uma nota que é mais um gemido e o americano de suspensórios com presilhas de ouro toma o décimo uísque, faz um afago na cidade pedindo que ela não morra. Ela não morre porque não pode. Há muitos jovens na ponte de Rialto festejando a fuga do mar e a permanência dos escombros venezianos. O olhar roxo da cidade escondido na piazza Santa Maria Formosa verte uma furtiva lágrima estendendo seu domínio sobre toda a libélula encantada pousada à beira do Adriático plantada em sua beleza perene, sempiterna e soluçante.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

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