O ar da metrópole 

São multidões comendo coisas estranhas e falando línguas exóticas. E muito, mas muito mais. Os olhos presos nos luminosos da Broadway enquanto o coração apela para a lembrança das origens, em busca de ajuda, de apoio. Mas as luzes da Broadway são implacáveis e pedem que o coração seja abafado. Desde logo porém admite que não se trata de um esquecimento ligado a renúncias. Uma saída é pensar em Nova lorque como uma ideia. Se a América, de um modo geral, todas as Américas são, no fundo, uma ideia, é possível ter a percepção, neste momento, de que essa ideia se materializa em Nova lorque. Os olhos voltam a se umedecer quando, na televisão, Liza Minnelli fecha o show da liberdade e nos dá novas pistas para procurar decifrar esta cidade grávida de futuro. Na ideia de América naturalmente está implícito um início de vida, ou melhor, um reinício com possibilidade de esquecimento da miséria e da opressão anterior. Contudo, o chofer de táxi insiste em me pedir que ouça uma canção do folclore indiano. Enquanto ele ouve enlevado essa dura canção de sua terra natal, que vem de um toca-fitas embutido no painel do automóvel, surge, de repente, do alto-falante de uma loja, a voz macia de Frank Sinatra. Mas o indiano parece que não percebeu o choque, ou pelo menos fingiu ignorá-lo, e por isso fala mais uma vez de sua aldeia "diferente e melhor do que qualquer outra aldeia do mundo." Imagino que deve ser um exercício a que se submete várias vezes por dia, esse indiano que vai levando seu táxi pelas ruas de Nova lorque. Um exercício que procura ser um antídoto para as ameaças de traição que ele teme e admite se esconderem pelas esquinas da cidade. Compreendo. São os povos do mundo vindo beber na fonte da possível liberdade e que estranham os primeiros goles dessa bebida, afinal tão rara nos estoques do passado humano. Perdoemos também aos desajeitados, aos que pedem "unas papas, unos ovitos, unas tortillas" no café da manhã com o inequívoco propósito de levar o Wasp a nocaute. Isto é, às suas comidas carregadas de ketchup, que igualam o sabor do caviar e do patê de frango. Desculpemos ao mexicano recém-chegado. Desculpemos sua ingenuidade e que não percebe que não é nada disso. Veja como as coisas estão acontecendo com insuspeitada velocidade. Veja esse homenzarrão do tamanho de um elefante carregando uma mocinha humilde, talvez do Bronx, sentada numa cadeira de rodas, descendo a rampa do Museu Guggenheim. Repare como apesar de todo aquele tamanho ele se movimenta com grande desembaraço e observa com muita atenção os quadros expostos. E, mais importante, veja a expressão de profunda alegria interior que pode ser flagrada no rosto da mocinha paralítica, que fica literalmente iluminado. Essa expressão talvez seja o que de mais importante esteja acontecendo no museu neste momento. Lembro-me do símbolo do Apolo, tradução da ideia grega clássica da tomada de consciência do homem em relação a si mesmo, do mundo de luz e confiança vislumbrado no futuro em contraste com um outro símbolo, o da máscara tribal onde se adivinha o temor dos fantasmas, o castigo por qualquer desrespeito ao tabu. Daí por que é tão emocionante o sorriso dessa humilde mocinha paralítica, olhando um quadro de Chagall e vendo, naquelas figuras de sonho que povoam a obra do pintor, algo que muito provavelmente representa uma perspectiva melhor para a aventura humana, da qual ela é uma decidida participante a esconjurar temores escondidos na noite.

E isto vai acontecendo em New York City, um evidente ponto de convergência do mundo no momento atual. Maugham, por exemplo, já havia falado em algo semelhante em relação a Honolulu muitos anos atrás. Mas penso que se trata de outra coisa. Os japoneses, muito asseados em seus ternos de brim branco - como dizia Maugham - não estão aqui apenas de passagem. Ao contrário, estão dentro de Nova lorque, como se pode ver neste anúncio do refrigerante Midori num luminoso que talvez seja o maior da Broadway. Ou nesses enormes anúncios da Toshiba. Por isso a experiência é outra. Liga-se sobretudo às complexas teias do comércio internacional, que acima de eventuais e inevitáveis conflitos representam na verdade a ordem econômica do futuro, onde o processo de cooperação é uma exigência das próprias circunstâncias em que se desenvolve a atividade econômica, em nível planetário. O Wasp fica observando. OK Wasp, marque um ponto. Não se importe muito com os inevitáveis argumentos de que a liberdade aqui existente ainda é muito precária. Não se importe tanto com aqueles que confrontam suas denúncias com a Estátua da Liberdade na entrada do porto, etc. etc. etc. E é sempre curioso constatar que tais argumentos, via de regra, são manipulados por segmentos originários precisamente de lugares onde predominam o atraso, a miséria e uma tradição autoritária. Claro, há sempre a desculpa baseada nos fatores externos, no falso patriotismo, "último refúgio dos crápulas", segundo a frase célebre. Na verdade, nesses lugares, a liberdade é considerada uma aventura demasiado arriscada para a fragilidade do ser humano. Esses segmentos questionam a cidade de Nova lorque que vai nascendo a seu redor, sob seus olhares frequentemente atônitos. E o aturdimento tem a ver com os hábitos da velha sociedade, dos escuros corredores da história onde o homem tem permanecido mais tempo que o desejável.

Vou olhando esses colossos de cimento armado que se amontoam como grossos paquidermes a olhar as multidões zumbindo em sua volta. Olho a ponte de Brooklyn, uma genuína obra de arte contemporânea em sua concepção de extrema simplicidade. A ponte é um risco cinzento na bruma da manhã novaiorquina. As linhas curvas de suas correntes de aço são um passo de dança imobilizado no gesto que une a ilha de Manhattan ao vasto continente da Grande Nova lorque. Enfim, ao resto do mundo, transmitindo nesse expressivo traço de união a própria essência do cosmopolitismo, do espírito metropolitano.

Mas agora Manhattan entra com um jogo muito duro dirigido especialmente a este pobre visitante que tenta resistir a uma sensação de irrefreável basbaquice desde que chegou a esta cidade. Mas há também uma atitude de resistência contra uma certa atitude crítica que muitos consideram obrigatória diante das realizações da civilização industrial. Talvez esse impulso ao basbaque seja apenas uma forma de atenuar um esnobismo que passou a ser também uma praga universal. Além disso, a estranha mania de julgar que não devemos nos surpreender com nada. Por que não se surpreender com essas coisas notáveis engendradas pelo espírito humano ou pelo trabalho humano, como queiram. Acredito que seja uma atitude deplorável essa pretensa ausência de surpresa. Por isso, por favor, deixe este pobre visitante soltar os seus cachorros ainda que isso seja considerado de gosto duvidoso pelos árbitros das pretensas ideias corretas, das ideias de bom-tom. O fato porém é que Manhattan, como disse, aplica um jogo violento em cima deste visitante. Acontece que numa esquina do Museu Metropolitano, ou melhor, na esquina de uma sala discreta do Museu encontro com o plácido pintor de nome Antonio Canal, vulgo Canaletto. Esse pintor está encarregado de submeter o visitante a uma prova de fogo. A prova é dura e pretende confrontar o seu sentimento do universal com suas particulares e paroquiais belezas. De imediato começo a ouvir diretamente das montanhas do Espírito Santo algumas das minhas queridas vecchie canzoni. Isso vai animando o Canaletto que vai mostrando suas obras-primas expostas no Museu e vai me levando com aquele jeito inconfundível de minha antiga gente. Vai me experimentando. Mostra-me os ca­nais de Veneza. Sou prevenido. Sei que há uma carta escondida na manga para o golpe final. Por isso, quando o Canaletto me mostra a Piazza San Marco aparo o seu golpe no ar. É preciso fazer uma pausa e tentar se incorporar a toda essa atmosfera cosmopolita. Talvez até convocar o indiano do táxi e procurar convencê-lo de que as nossas velhas canções estarão aqui também como uma molécula da Nova Dama do Porto, que é como está sendo chama­da a Estátua da Liberdade depois de reformada. E aí talvez possamos cantar as nossas belas canções particulares em surdina enquanto escutamos a grande canção geral que emerge do coração das Américas, na passagem de uma importante estação no caminho do futuro desejado. Assim seja.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

Leia outros textos