Confluências

Daquelas fases em que pequenas amolações vão se acumulando e, de repente, se juntam a uma amolação maior para produzirem uma tristeza só.

Que fazer? No momento sua disposição era outra. Estava firme em seu propósito de deixar de fazer qualquer coisa. Preferia olhar essa companheira cinzenta, a praia de Camburi exercitando suas ondas lerdas. Interpretou como uma ironia sem sentido o aparecimento de um arco-íris pelos lados de Tubarão. Os ruidosos jogos de vôlei, que enchem a praia com a alegria dos jovens, deviam estar acontecendo do outro lado do mundo. Ali permaneciam apenas as arquibancadas de ferro pingando restos de uma chuva recente e agonizando em saudades.

Agora a tarde já vai se despedindo e o tédio se acentua com as luzes acesas do outro lado da enseada. São luzes coadas pela poeira aquosa, luzes indecisas que acrescentam mais um matiz nessa irremediável tristeza que cai como uma capa neste pedaço perdido do Atlântico Sul.

Sentou-se num banco da calçada e ficou olhando o movimento daquelas pessoas que passeiam por Camburi buscando melhorar a saúde. Sua atenção foi despertada por uma dessas pessoas e, como uma luz longínqua mas muito firme, teve o estalo: o cidadão que passava era ninguém menos que o Celerado. Procurando não ser indiscreto, fixou a atenção em sua figura. Calculou sua idade, por alto. Devia andar pelos setenta e poucos, isto é, afinal, um companheiro de viagem que tomou o vagão um pouco na frente. Trazia um cachecol amarrado no pescoço e, na cabeça, uma boina de lã, apetrechos de proteção contra a frialdade notur­na. Observou que o tempo trabalhara com afinco em seu rosto. Possuía plenas condições de entrar para a categoria do idoso. Mas, alto lá, exceto por um importante detalhe: o bigode preto que continuava a carregar como um estandarte imbatível.

Enquanto o observava, foram surgindo estranhas palavras em sua memória: biltre, imbecil, facínora, que afinal deram o contorno para justificar o cognome do Celerado que ele mesmo lhe havia posto depois de uma demorada análise dos termos que pudessem ser os mais ofensivos. Envolvido por essas palavras que tinham um certo peso cabalístico, na verdade viu-se transportado de Camburi para uma mansarda da rua Gama Rosa, no início dos anos quarenta. Também possivelmente por artes de cabala, surgiu nítido o quadro dos episódios da mansarda. Terminadas as aulas do ginásio, ele reunia seu valioso equipamento, que constava de um maço de cigarros Liberty ovaes, revistas do detetive X-9, gibis e um livro sem capa de Somerset Maugham que contava histórias dos mares do sul. Assim armado, subia para o posto de observação num postigo junto ao telhado. O alvo da observação: a Menina de Trança que morava um quarteirão abaixo. Sua vigília demorou talvez uma semana e, nesse tempo, no meio de seus equipamentos, ficava calculando estratégias de abordagem, chances de êxito e fazia a contabilidade de vantagens e desvantagens. Entre as principais desvantagens, a enorme diferença de mais ou menos cinco anos entre suas idades. Quando se tem treze anos uma diferença dessas equivale a pouco menos que a eternidade. A Menina de Trança devia ter seus dezessete, dezoito anos. Durante o período de observação foi anotando um pequeno perfil dos hábitos da menina. O mais importante era o de comprar pão numa padaria perto da igreja do Carmo. Às vezes saía com a mãe para os lados da rua Sete mas não demorava a voltar para casa. Não conseguiu descobrir se ela estudava em algum colégio, o que abriria em muito as possibilidades de um ataque de flanco. Enfim, sozinha, só mesmo para comprar pão.

Ao fim de uma semana já havia usado todo o equipamento de campanha. Leu as histórias do livro, fumou o maço de cigarros e, como não sobrou dinheiro para comprar outro, fumou também todas as guimbas espalhadas pelo chão da mansarda. Leu todas as histórias do X-9 mas foi a leitura do gibi que afinal se revelou de maior utilidade para qualificar o personagem surgido no momento em que julgara madura sua possibilidade de êxito na abordagem decisiva. O desastre aconteceu exatamente com o surgimento do grande sedutor ostentando seu enorme bigode preto à Clark Gable e seus acachapantes vinte e cinco anos de idade, no mínimo. O grande sedutor, o Celerado, vinha liquidar com todas as suas estratégias e táticas. De uma forma bastante evidente ficava claro que ele era o namorado da Menina de Trança, sua quase ex, ao acompanhá-lo de braço dado, para comprar pão. Não pôde determinar se aquela desastrosa circunstância era recente ou vinha agindo atrás das linhas. O fato é que pela imensa desproporcionalidade entre seus próprios recursos e os do Celerado, deu a situação como perdida. Seu magro consolo foi o de recorrer ao recém descoberto vocabulário dos heróis das histórias em quadrinhos, dos gibis que levara para o sótão. Um vocabulário usado contra criminoso: biltre, imbecil, celerado, “prendam esse facínora”.

Pouco depois desse episódio, mudou-se da casa da mansarda e nunca mais viu o Celerado ou a Menina de Trança.

A noite caíra em definitivo sobre Camburi. Os vestígios do grande sedutor e seu imperecível bigode ainda podiam ser vistos ali adiante, no balcão de um quiosque, bebendo água de coco.

Antes de ir para casa chegou a imaginar a hipótese de um diálogo com o Celerado. Uma ousadia que a cumplicidade dos anos poderia justificar. Houve um súbito interesse em saber se a Menina de Trança fez parte de sua própria história ou se sumiu no tempo. Mas desistiu dessa intenção porque no fim das contas seria um diálogo entre simples vestígios das pessoas que eles foram e a comunicação seria impossível. Melhor mesmo esquecer, deixar as coisas como estavam porque de confluências desagradáveis estava farto e existia a possibilidade de acontecer mais uma com esse conluio sistemático que os fados resolveram organizar para azucriná-lo.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

Leia outros textos