O azul do mar

Um trajeto corriqueiro. Vinha de Vila Velha para Vitória pela Terceira Ponte. Corriqueiro? Não naquele dia. Lá na frente, essas línguas de água do mar entrando pelas terras do continente para desenhar e afinal criar a ilha de Vitória, limitando seu ataque na franja que recorta as praias de Camburi e do Canto. Talvez por descuido, deixando escapar de seus domínios as ilhas do Frade e do Boi. Feliz descuido porque afinal fazem parte do conjunto desta nossa cidade que, em especial naquele momento, o superlativo belíssima caía com a maior naturalidade. Se incorporarmos à paisagem o perfil do Mestre Álvaro, esbatido no céu da tarde, deixaremos a “inculta e bela” meio desconfortável porque ficará algum tempo catando palavras e expressões para descrevê-la.

Mas é preciso dizer que uma rápida olhada para a direita, para o imenso azul do mar e suas incomensuráveis lonjuras levou-me para outra direção. Levou-me para um tal de “duvidoso mar”. Ora, pensei: de onde me veio essa? Duvidoso mar? A resposta estava em minha estante no livro Romanceiro Capixaba, de mestre Guilherme Santos Neves, que ganhei dele em 1983. Parabéns, memória. Lá está a citação completa: “o duvidoso mar num lenho leve”. Camões. Pois foi singrando o azulíssimo mar visto à direita que Vasco Fernandes, em seu frágil lenho, chegou por aqui. Uma descrença desdenhosa no esforço de nossa espécie de “ir em frente” talvez olhe para as façanhas daqueles navegadores do século dezesseis com a indiferença dos que imaginam que, por exemplo, as conquistas tecnológicas que melhoram nosso viver foram colhidas em árvores na floresta e não do “engenho e arte” dos humanos. Para esses distraídos seria oportuno lembrar o que diz uma remota história do massacre dos neandertal acuados no estreito de Gibraltar. Eles olhavam tristemente para o mar e esperavam o inevitável fim porque não conheciam a arte de navegar. Se hoje o Mediterrâneo é uma espécie de mar doméstico seria extrema bobagem zombar de Homero na descrição dos fantásticos problemas enfrentados pelos seus heróis. Afinal, pode-se imaginar o que terá sido o esforço humano para ir superando as fronteiras de água.

O Vasco que chegou à Prainha faz parte da ilustre estirpe dos Ulisses que alargaram as fronteiras do mundo e se obrigaram a isso porque inscrito em seu destino. Não deram ouvidos aos “velhos do Restelo” de todas as épocas porque afinal preparavam o novo cenário do mundo onde, depois, tanto Smith como Marx inscreveram a ação transformadora do trabalho como o fulcro da modernidade. Mas se o Vasco chegou e se instalou em nossas plagas muitos outros não chegaram ao destino ou chegaram em frangalhos. E é exatamente um lance do sofrimento dos que se aventuraram a atingir esse mítico “outro lado” o que nos conta mestre Guilherme no capítulo da “Nau Catarineta”. Logo no início ele nos adverte com uma citação onde diz que as ocorrências descritas têm uma tradição internacional e a lembrança das peripécias dessas “naus” seria renovadora duma tradição pelo menos latina, na memória portuguesa salgada de tanto mar. A advertência, acredito, justifica a procura de inserir o episódio num amplo quadro do esforço humano para superar obstáculos. Um resumo grosseiro dele nos informa que a bela nau ficou sete anos e um dia sobre o mar. Em certo momento não havia o que comer nem beber. A única coisa disponível eram solas de sapato que os marinheiros colocaram de molho para jantar. Mas as solas estavam tão duras que ninguém pôde comer. Resolveram então tirar a sorte para ver quem seria morto para servir de comida. O sorteado foi o capitão do navio que não quis aceitar sua sorte, etc. O episódio comporta diversas versões, mas isso é assunto de especialista o que não é o meu caso.

Entre tantos outros campos onde garimpa a memória popular com a conhecida competência, Dr. Guilherme pesquisou as reminiscências desse episódio no Espírito Santo. Encontrou, tantos séculos depois, exemplos de como esses dramas da experiência humana persistem na memória social, nas danças dramáticas da Marujada em Campo Grande (Cariacica), no Morro dos Alagoanos (Vitória), em Guarapari e em Formate (Viana) e que são reproduzidas no Romanceiro Capixaba.

 

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