A utilidade veste prada

A grande dama do cinema americano, Meryl Streep, com a conhecida classe de superstar, navega em “céu de brigadeiro” no “Diabo veste Prada” até topar com uma candidata ao cargo de sua assistente: Anne Hathaway. Ali encontrou alguém com talento à sua altura. A partir de então, assistimos a duas performances inesquecíveis. Não me lembro de ilustração melhor, no cinema, da “prepotência embuçada”, seguida do contraponto de como enfrentá-la com falsa humildade, ironia e piedade. Este o papel da então novata Anne em confronto com a megera Miranda (Streep).

Mas o filme despertou outras cogitações que vêm a seguir. Desde logo peço desculpas pela aridez dos conceitos que presumo importantes e oportunos por focalizar o debate econômico de um ponto de vista seminal. Outra ressalva é pelo extremo esquematismo a que me obriga o espaço e o limite da paciência de prováveis leitores.

A história de “O diabo veste Prada” se passa nos bastidores de uma grande revista especializada em moda e as conversas giram em torno de modelos assim e assado. O que mais se ouve é que o modelo tal custa xis milhares de dólares e o qual não sei quantos mais. Citam-se grifes classificadas segundo um código a que só iniciados têm acesso. Iniciados com poder de veto e gratificação sem a necessidade de explicar nada. Ditadores de qualidade e preço.

E as cogitações?

Como quem não quer nada, o filme bate numa encruzilhada básica do pensamento econômico ocidental: os bens econômicos teriam valor objetivo ou subjetivo? Não se incluem aqui as infinitas variações do tema, mas, acredito, o essencial de ambos os princípios pode ser apreendido em sua simples formulação original. 

A partir do final do século dezoito e até hoje, é uma questão em aberto lastreada por ideologias conflitantes. Houve quem tentasse conciliar os dois campos como um certo Alfred Marshall no final do século dezenove. Mas, no mundo real, as tendências tomaram caminhos diferentes e um exemplo significativo é o da União Soviética que baseou sua economia no planejamento central e no valor objetivo. Os bens custariam o tanto do trabalho que demandassem. Elimine-se o subjetivismo do mercado e aplique-se o planejamento segundo os interesses maiores da sociedade em geral. Por melhores que fossem as intenções dos formuladores da ideia, por mais que o princípio tivesse sólidas bases filosóficas, o resultado é bem conhecido e veio com a marca da intolerância, da falta de liberdade e da violência.

Na parte do mundo ocidental a que críticos chamavam ironicamente de “mundo livre” e apesar de o valor objetivo ter sido formulado nos primórdios da Revolução Industrial, por um dos fundadores da Economia e do liberalismo, Adam Smith, (ainda que de forma ambígua) a ideia de valor foi retomada pelos marginalistas no terço final do século dezenove e acabou do lado oposto a Smith. Enfim, o valor seria determinado pela avaliação subjetiva, pela utilidade que o bem assumia perante o consumidor. Não é preciso acrescentar que o crescimento econômico proporcionado por tal visão associada à ideia de livre iniciativa e liberdade de escolha foi muito grande apesar de carregar no passivo crises cíclicas e ondas de desemprego.

Enfim, o problema econômico estaria resolvido satisfatoriamente? Chegamos ao “Fim da História”? Estaria resolvido, por exemplo, nos EEUU, país de economia basicamente descentralizada e onde a ideia de valor subjetivo é dominante? No livro “A consciência de um liberal”, Paul Krugman, Nobel de Economia, depois de críticas à vida econômica americana diz que acredita “em uma sociedade relativamente igualitária, apoiada por instituições que limitem os extremos de riqueza e pobreza.” Diz ainda que acredita “na democracia, nas liberdades civis e no Estado de direito. Isto me torna um liberal e disso me orgulho.” (pg. 324).

Os procedimentos daquele universo girando em torno do “Diabo veste Prada” orgulhariam a um liberal? Fiados nos mandamentos da subjetividade, os mandarins da moda estipulam valores que não têm a mínima correspondência com tempo de trabalho e custo de produção. Sabem que podem determinar seus valores porque há alguém disposto a pagar os milhares de dólares por um pedaço de pano confeccionado por alguém a quem chamam de gênio, criam uma “utilidade artificial” e incentivam um comportamento a que Veblen chamou de “consumismo conspícuo”.  Quando há na sociedade alguém que pague esses preços exorbitantes existem indícios de que os extremos de riqueza não foram limitados e um liberal não teria nenhum orgulho disso. Óbvio que não está em causa a imensa diversidade da oferta num sistema de livre mercado e, em consequência, as enormes possibilidades de consumo que tais circunstâncias possibilitam. Isso nada tem a ver com o caso específico abordado e seus contornos teratológicos.                             

Marshall, o inglês (final do século dezenove), com o crédito que lhe dão os especialistas de ter criado grande parte do instrumental da moderna Economia e que tentou conciliar as duas teorias do valor, diz que “A Economia Política ou Economia é o estudo das ações humanas... para consecução e uso dos requisitos materiais do bem-estar.” É bom acreditar que a “atual bagunça econômica”, como a classifica a revista “Time” numa vinheta do livro de Krugman, possa ser superada com o prosseguimento da ideia de Marshall que inclua um tempero ético e aplicação maciça de recursos em educação.     

 

Leia outros textos