Nota sobre comida e tradição

Certo: “Moqueca só capixaba”. Mas agora, graças ao presente da Alessandra, tenho também um dito peremptório: “Farinha só da Bahia”. Talvez até pedir emprestado ao Bardo o complemento xeque-mate: “... e o resto é silêncio”. Um silêncio que cai sobre velhos e modernos quitungos silenciados pela iguaria que vem lá de cima do mapa. Iguaria? Iguaria mesmo porque mais uma vez se confirma que a preparação de alimentos simples tem também um componente misterioso. Afinal o que é a farinha de mandioca? Uma humilde “farinha de pau”? Foi assim que conterrâneos imigrantes qualificaram a farinha que lhes era apresentada e a confundiram com uma espécie de queijo ralado de péssima qualidade. Pode ser mesmo que tivesse gosto de madeira serrada porque ainda hoje há muita farinha que só serve para engrossar o feijão e não tem gosto de nada. Talvez de raspa de folha de compensado. Não foi certamente farinha baiana que nossos conterrâneos experimentaram naquela época, porque se fosse o diagnóstico seria bem outro. Agora sei por que os beijus de São Mateus e Conceição da Barra são imbatíveis. A influência baiana por lá é forte e no bojo das influências estaria também a maneira de fazer esse derivado da mandioca que tem gosto e cheiro discreto de biscoito finíssimo. 

Mistérios da tradição

O caso da galinha. Vocês aí, sobreviventes do meu tempo, isto é, tempo da Segunda Guerra, quando invejávamos os americanos que viviam por aqui trabalhando no “esforço de guerra” porque eles comiam galinha todos os dias. Nosotros, galinha e macarronada só aos domingos. Questão de níveis de renda associados a níveis de galinha, porque então a galinha era criada com sobra de comida. Hoje, em escala industrial, quem vai poder criar o galináceo com feijão, milho, arroz e verduras? O preço seria alto como era, aliás, no tempo em que os americanos comiam o prato diariamente. Mas consumir essas galinhas plastificadas de hoje, com gosto de “iodofórmio”? (Peço emprestada a palavra a minha mulher, que classifica como com “gosto de iodofórmio” toda comida de que ela não gosta). Mas também creio que pelo fato de a galinha ter se transformado no que é hoje, perderam-se igualmente os segredos das que faziam a galinha ensopada de antigamente, da espécie das cozinheiras encontradas num conto de Guimarães Rosa, as que habitavam enormes e mitológicas cozinhas de fazenda com seu “alto teto de treva” e “montes de sabugos descendo de metades de paredes”. Cozinheiras que, enquanto trabalhavam, trauteavam cantigas inentendíveis ou comentavam “casos e feéricas vidas de santos”. Procurando bem, talvez lá no interior profundo aqui do Estado, onde as modernas técnicas de criar galinha ainda não chegaram, talvez se reencontre o prato perdido.

Falo dessas comidas básicas. Quando entra a turma sofisticada do estragão, do tomilho e similares, entramos na “selva selvaggia”, onde se podem encontrar sabores do céu e gororobas infernais. Embora sempre exista a possibilidade de certo camarão preparado segundo as escrituras da “nouvelle cuisine” e que podem transportá-lo ao empíreo.

Mas, sim, farinha de mandioca só a baiana. 

 

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