Sempre que vou à Ilha do Boi me lembro de D. Jorge de Menezes. Claro que D. Jorge é um defunto de quase quinhentos anos, mas foi esse fidalgo integrante da comitiva Grorya o primeiro proprietário do lugar, presente de Vasco Fernandes Coutinho quando ainda se chamava de primeira ilha. Segundo consta, logo herdou ela o nome de seu proprietário, o fidalgo D. Jorge, mandado ao Brasil por El Rei para que aqui morresse. E que aqui morreu, vítima talvez de sua consumada maldade contra os índios, vítima de frechadas possivelmente aí na ilha onde estabeleceu sua residência.
Do lugar lembra-se ainda que vestira roupa de ponto estratégico de defesa da Capitania e teria sido pasto farto para grande quantidade de gado – o que lhe deu o nome atual – antes que as obras de aterro da década de 1970 a incorporassem à área urbanizada da cidade. Eu, quando vou à Ilha do Boi e estou com espírito de porco, lembro-me de pensar, a respeito do fidalgo D. Jorge, que às vezes os canalhas desmerecem o lugar em que se vão desta para melhor.
Não era ― mas era também ― sobre isso que desejava falar.
Gostaria de dizer-lhes que outro dia fui à Ilha do Boi. Era um dia atípico. Chovia uma chuvinha fina, dessas que devagar molham ao longe. Quando cai uma chuva assim, aí é que me dá vontade de bater perna, um costume que assombra a muita gente, dada a sair quando sai o sol e brilha o dia. E é ainda que um tal dia assim me oferecia oportunidade única de estar quase a sós em um local cenário para umas passagens domésticas de minha curta existência com um gosto açucarado de chupe-chupe de pitanga cujo travo não me sai da língua.
Pois bem, e o que vi? Vi que, conforme previam minhas expectativas, não havia ninguém na Praia da Direita. Absolutamente ninguém. Nem mesmo sob a bela castanheira que existe logo na entrada da pequenina praia onde minha filha Mariana viu o mar pela primeira vez, cuja sombra deve ser disputada a tapa em dias normais, e que, ordinariamente usada para proteger contra o sol, naquele dia chuvoso não podia servir a ninguém de abrigo da chuva. E vi que nada se compara à solidão de uma praia. Pois então dava gosto ver-se mesmo o silêncio das janelas das casas cujos muros se debruçam sobre a margem da areia. Nenhum movimento senão o dos bem-te-vis, joões-de-barro e sanhaços. E dos meus pés na areia molhada, esquadrinhando a praia de um lado ao outro dessa praiazinha tão elitista e tão bem frequentada.
Está certo, estava uma beleza a Praia da Direita, mas uma visita completa, a que se impunha a cortesia e a decência, requeria uma visita também à Praia da Esquerda, à qual acorre em domingos ensolarados tal multidão que difícil é imaginar como cabe naquele pequeno condomínio de sal, areia e água tanta gente sã.
Aí nessa praia havia meia dúzia de gatos molhados. Fácil de contar: uma senhora comia pitangas, duas crianças pulavam na água, vigiados por uma pequena multidão de olhos de tias aflitas, uma senhora magricela, de nervos espichados, buscava do quiosque uns fregueses imaginários. Ah, sim, ia me esquecendo: essa senhora, enquanto estendia seus olhos, conversava com um esportista que ali parara para hidratar-se com água de coco e narrava-lhe o último fato importante da Praia da Esquerda:
― Pois olhe que a praia estava cheia, cheia como nunca. Ele apareceu não se sabe de onde, de repente foi tiro para todo lado. Descarregou o revólver numa moça que estava ali ― e aponta com os beiços um lugar indefinido da praia ― e não acertou nenhum. A confusão foi grande, muita gente se machucou, mas ninguém levou tiro, um milagre.
E o vento, vindo até o banco onde eu me sentara, trazia mais novidades:
― Soube-se que ela saiu de casa dizendo que ia para a igreja, saiu toda arrumada de roupa de igreja, debaixo de tudo estava de roupa de praia, veio direto para cá. O atirador, não sei quem é, se marido, se namorado, se um noivo ofendidíssimo, seguiu a moça, surgiu aí dando tiro. E olhe que ela nem estava fazendo nada de errado, não, só veio à praia tomar um sol, tomar um banho, um dia tão lindo, coitadinha.
Ainda enquanto fazia o percurso de volta, ia recompondo a tragédia da Ilha do Boi, essa pequena tragédia suburbana que deve ter acabado em vexatórios rogos de perdão e promessas de amor na Delegacia da Mulher. E que, compunha, ao final das contas, gostemos ou não, uma história romântica.
Mas quereis saber, vós meus contemporâneos que com nada vos surpreendeis mais? Enquanto caminhava meus passos de volta, lamentava retirar-me da Ilha do Boi, de suas pequeninas praias, noticiando-vos, da Praia da Esquerda, uma peculiar história de amor composta por esses dramas domésticos que ocorrem às dúzias todas as semanas, sem ter que, de amor, uma história sequer que contar-vos também da Praia da Direita. Que haverá de ter as suas, ah, sim.