Vou lhes contar uma singela história que ouvi outro dia de um eletricista que veio instalar em minha casa um ventilador de teto. Não lhe pedi que me contasse, não o provoquei a me contar, mesmo tendo percebido que ele necessitava desesperadamente contá-la a alguém. Como me contou. E foi assim:
― Minha ex-mulher é cantora gospel ― ele falou um pouco assim como se quisesse tirar uma casquinha de um possível prestígio que a profissão de sua ex-mulher pudesse lhe dar.
― Ex? ― perguntei eu quando queria perguntar: gospel?
― Quando ela foi descoberta pelo empresário dela, ainda era minha mulher. A gente se dava bem, frequentava a igreja, ela cantava no coro.
Como não quisesse enfiar minha mão nessa cumbuca conjugal, esperei. E ele não demorou.
― Eu não cantava nem tocava, mas ouvia com atenção e até já me disseram que meus olhos brilhavam muito quando eu assistia a uma apresentação dela.
Ele arrancava pedacinhos da capa dos fios e jogava no chão. Seu alicate desenhava um curso raivoso.
― Então apareceu o empresário e gostou da voz dela. E não é porque é minha ex-mulher, mas a voz dela é mesmo uma beleza. E entre aleluias e gloria-a-deuses ela cresceu, gravou CD e se deu muito bem no ramo. Gravou até DVD.
Imagino, pensei eu. E ele, contrafeito:
― Foi aí que ela descobriu a nossa incompatibilidade e me deixou para se casar com o baixista ― quando ele disse isso, quase pude ouvir um riso de desdém.
― E você, casou-se de novo? ― perguntei por absoluta falta do que perguntar.
― Casei-me.
Ele cuspia pedaços de capa de fio no chão. Quando parecia que ia se calar, resolveu concluir sua história dessa forma:
― Mas essa, embora cante, canta mal, e fica comigo no banco da igreja. Não quero mais saber de mulher minha no coro da igreja.
Nada mais havendo, encerrou a história, contadinha aqui do mesmo jeito como ele me contou, com a liberdade de umas pequenas invenções para que ficasse do jeito que ficou.
Sim, mas e daí? Não posso concluir a crônica assim. Necessário arranjar-lhe uma utilidade qualquer. Por isso reflitamos:
A música gospel, que já incluiu nomes mais nobres (Beethoven e Bach, por exemplo, compunham música sacra e ganhavam a vida com isso), rende, no Brasil, um bilhão de reais mensais. Entre os 20 CDs mais vendidos no país figuram obrigatoriamente vários títulos do gênero, tanto que empresas de peso, como a Sony Music e a Som Livre, têm segmentos dedicados a esse lucrativo mercado. Os concertos envolvendo o gênero atraem milhares de pessoas, uma das maiores estrelas da música gospel do Brasil chegou a ganhar o Grammy Latino para música sacra. E por aí vai.
Uh! Uh! Não é para espantar, caríssimos? E olhe que, olhando bem, o mercado agasalha todo tipo de credo, pois no negócio há, como se supõe haver sobre a Terra, espaço para todo mundo e para toda fé.
Fico aqui pensando: não dá medo de que um dia os homens de boa vontade resolvam faturar também com a luz do Sol ou com uma vista da Lua que, assim como a prática da fé, são, supõe-se, ofertas de Deus? E fico aqui pensando bastante pasmado, a propósito.
Bom, enquanto essas questões metafísicas se não resolvem, creio que devamos concluir aqui esta crônica. Devo dizer-lhes que entre os vários sentimentos que isso tudo promove em mim, um deles ressalta, até por uma questão de empatia e calor humano: que a dor de corno de meu recente amigo me parece bastante justificável. Não foi só a esposa que ele perdeu para o baixista ― que certamente também será gospel. Ele perdeu uma fatia do mercado.