Anteontem, disse-me meu amigo Thomas Veiga, fui ao cinema com minha namorada. Ela desejava já há alguns dias assistir a um filme xaroposo que estava sendo exibido e cumpria-me a obrigação – muito menos que prazer – de acompanhá-la, já que não pude dissuadi-la. Quase sempre me divirto muito com esses filmes xaroposos, esquematizadíssimos, e enquanto ela chora de se acabar, eu rio que me acabo. O cinema estava vazio, éramos sete espectadores, talvez houvesse mais, mas estes me bastam. Duas jovens e um mancebo sentaram-se na fileira atrás de nós e um casal de belas meninas sentou-se logo abaixo, creio que a umas três fileiras – distância suficiente para que ouvíssemos os estalos líquidos de seus beijos. Muito que bem, o filme foi exibido, num dado momento minha namorada e os espectadores atrás de nós caíram no choro e o casal de belas meninas, aproveitando que o filme era mesmo de amargar, caíram numa bolinação divertidíssima – para mim, foi a melhor parte do filme. Quanto a mim, aguentei firme o tranco, o que equivale dizer que, não tendo chorado, também não ri, para não ofender a ninguém nem parecer desrespeitoso com a dor alheia.
The end. Porque não é essa a história que ele desejava me contar. Era bem outra. E aconteceu antes do inapetente prato principal.
Deixe-me, prosseguiu Thomas, lembrar uma coisa: pouco antes, enquanto minha namorada e eu devorávamos peixe cru e outras iguarias sob os auspícios de uma coca-cola, essa poderosa ignomínia líquida a que nem sempre conseguimos resistir, eu evocava a lembrança do livro de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, para dizer a ela que se Lima Barreto fosse branco, seu destino literário seria bem outro. E que se a África fosse branca e rica, não estaria sucumbindo ao HIV e agora a uma perigosa epidemia de ebola sob a indiferença das grandes nações do mundo. E que havia bolivianos pagando de escravos em São Paulo, e blá-blá-blá.
(Que vergonha me dava expressar a minha revolta com a boca cheia de sushi... Mas se mesmo Danton, um revolucionário de verdade, apreciava a mesa, e a mesa farta, por que não poderia eu expressar-me enquanto me alimentava tão frugalmente? Ah, por favor, meu caro, creia-me, acredito na sinceridade tanto quanto na inércia do brasileiro cordial.)
Eis o que me esperava, encaminhava-se o meu amigo:
Sentado confortavelmente em minha cadeira do sofisticado cinema, julgava estar ali para me divertir, me comover – nem seria o caso em se tratando do tal filme a que me referi no início –, passar noventa minutos agradavelmente e tal. Coisa a que todo mortal tem direito. Em vez disso, antes da exibição do prato principal, fui submetido a um torturante curta em forma de desenho animado de última geração. Vou lhe contar a coisa:
Num mundo futurista ia ser disputado um grande campeonato de futebol. Grandes craques, desses que ganham um salário tão irreal quanto um gari, estavam sendo clonados, clones perfeitos, geniais na arte da bola, coisa de louco. Resultado: os clones dos craques colocaram os verdadeiros craques no chinelo – ou na chuteira, como queira. Eis que aí aparece um catalisador, um sujeito genial com a cara de um tal Ronaldinho Fenômeno (acalme-se, não precisa tirar as crianças da sala) e com palavras de ânimo muito poéticas – vocês podem, vocês conseguem, coisas do gênero – incita os craques a seu reunir para derrotar o time de clones. O resto é previsível, claro, o time de craques, depois de sofrer as mais previsíveis humilhações em campo, detona o time de clones a dois segundos do final. E o tal filmeco – mais de cinco minutos, quase dez, talvez – apresenta seu patrocinador: Nike.
Nesse ponto meu amigo Thomas parecia indeciso, era como se revivesse um momento de choque. Por fim de alguns instantes, concluiu-me, afinal, a historieta que me vinha contando com esse diálogo ocorrido logo após a exibição do tal curta.
– Esse filme é uma vergonha – ponderou o rapagão que estava entre as meninas na fileira de trás.
– Por quê? Tão bonitinho – ouviu-se uma voz manhosa.
– Não posso ver um filme patrocinado pela Nike: eles escravizam asiáticos em águas não territoriais.
– Ah, cale a boca – disse a outra. – Vamos combinar que todo mundo tem um tênis dessa marca e tá nem aí. Olha só, o filme vai começar.