- Me diga, Samuel, de onde vem esse seu brilho nos olhos?
- Não sei se meus olhos brilham, ou não. Mas se brilham é por causa de Brigitte Montfort - e enfiou a mão na parte interna do velho capote - que fazia um vento sul medonho em Paul desde ontem -, tirando de lá um exemplar algo gasto da coleção ZZ7 com mais uma das apimentadas aventuras da deliciosa espiã Brigitte Montfort. - Pode olhar - ofereceu-me.
Agora meus olhos é que deviam brilhar. Tinha nas mãos um antigo exemplar de Perigo entre crisântemos com ela, Brigitte Montfort em pessoa fazendo pose de pudica, escondendo os seios com os braços, a cintura coberta por crisântemos amarelos onde se aninhava uma serpente negra. E o alerta, sobreposto a uma casa em estilo japonês: "um belo jardim japonês pode esconder muitas serpentes".
- Mas, meu caro Cortês, que raridade! - não pude deixar de me espantar.
E ele, todo triunfal:
- A filha de Giselle, meu caro, a espiã nua que abalou Paris. E arrematou: - Consegui numa empoeirada banca de revista lá no centro de Vitória. Fiquei procurando outros, mas só havia esse.
- Editora Monterrey, capa de Benício - balbuciei.
- Claro, meu amigo, está tudo aí, é mesmo Brigitte Montfort, o autor é o bom e velho escritor espanhol Antonio Vera Ramírez, pseudônimo Lou Carrigan. É um exemplar autêntico.
- Mas você sabe, Cortês, quem é Brigitte Montfort?
- Cada um de nós tem uma versão de Brigitte Montfort, meu caro metafísico. Trago bem guardada a minha num quintal dentro de mim.
- Era precisamente no quintal que eu me encontrava a sós com Brigitte, meu caro - gracejei corando do vexame a que expunha minha amiga de papel e éter.
- Quem poderia resistir a ela? Veja só suas curvas, o cabelo negro, os olhos escancarados no azul. Eu também já fui adolescente, meu chapa.
E, como eu nada dissesse, ele disse:
- Nós sabíamos que Brigitte Montfort não era propriedade de ninguém. Todos nós nos enamoramos dela, ou fomos doidamente apaixonados. Mas quem se importava de compartilhá-la se Brigitte Montfort era uma experiência única dentro de cada um de nós?
- Realmente não importava se todos nós amássemos Brigitte Montfort. Eu e a caterva de meus iguais a compartilhávamos sem nenhum pudor. Era um tempo de febre adocicada, cada um de nós tinha seus encontros furtivos com uma Brigitte única, porque feita única, a que naquele momento não poderia ser tirada de ninguém que com ela estivesse. Depois, meu caro Samuel Cortês, depois veio um vento e varreu tudo. Claro que entram nisso outros interesses literários e o desencanto das descobertas. Por exemplo: para mim, Lou Carrigan devia ser uma escritora tão gostosa quanto a personagem. Fiquei desapontado quando vi a cara do verdadeiro autor, esse espanhol Antonio Vera. Foi uma dura traição de Brigitte, uma de suas farsas.
Creio que foi porque Samuel percebeu que eu estava entrando pela avenida ampla da amargura que ele pediu dois pingados.
- Escute, meu caro, quem ainda pode, apesar de tudo, resistir a Brigitte Montfort? Não seja dramático. Você está tendo a chance do reencontro e vem com essas lamentações... É Brigitte Montfort, meu caro, Brigitte Montfort. Não me vá escandalizar a grande dama. Respeito, por favor.
Vieram os pingados, vieram os cigarros fumados sob a marquise da padaria em Paul. Eu tinha, claro, que devolver o livro a Samuel e seguir em frente.
- Nada disso - disse-me ele. E pondo no rosto a melhor expressão de safadice que pôde: - Eu já li, fique com ele.
- Eu não posso.
- Claro que pode. E não se preocupe, não precisa devolver. É todo seu.
Despedi-me de Samuel com grandes expressões de agradecimento. Um pouco mais e me tornava chato. Ele quase que empurrou-me em direção à realidade do meu dia. Enfiei o bolsilivro entre os papéis dentro de minha pasta e segui adiante. Algo me dizia que eu havia recuperado um pouco da antiga alegria de viver.