Palhaço

O olhar de meu bom amigo Samuel Cortês parecia vir de muito longe, além de uma indistinta cortina de fumaça que subia de sua xícara fumegante de café com leite, quando ele me perguntou:

– Você gosta de palhaço?

– Palhaço? Eu? Gostar, mas... gostar por gostar, eu também gostaria que... palhaço?

Samuel, que não perde um mote, logo arranjou de glosar pela tangente:

– Bem, está certo, todos nós somos, em certa medida hoje em dia, feitos de palhaços. Mas não é a nós que me refiro, mas ao palhaço de circo.

– Desculpe-me, mas é que você me pegou desprevenido. Eu nunca poderia imaginar que...

– Não precisa se desculpar. Parece bastante razoável que ninguém hoje em dia se lembre dos palhaços.

– Mas não é que não me lembre. Aliás, lembro-me muito bem.

Beberiquei também ainda um pouco meu pingado, e quem me visse notaria que me tornara melancólico sob o peso de umas lembranças. E essas lembranças se tornaram evidentes a tal ponto que meu pensamento já me pusera longe dali, em remotos dias da infância. Num instante me coloquei na cena em que meu pai conversava com o proprietário do Circo e Tourada Pan-Americano, que de seis em seis meses era armado no terreno do antigo cemitério de São José do Calçado. Meu pai se tornara amigo desse grande herói do circo porque capitaneava com os pecuaristas da cidade o empréstimo de bois para as corridas de tourada. Ele aparecia lá em casa com frequência quando o seu espetáculo estava na cidade, vinha trocar prosa com meu pai, vinha contar-lhe suas histórias e purgar as angústias e incertezas típicas de quem leva vida itinerante. E meu pai, bom amigo, bom ouvinte, consolava com seu bom ouvido o amigo sofrido.

Quem o visse conversando com meu pai, cabisbaixo e autocomiserativo, não o reconheceria à noite. Comandando o espetáculo, era o capitão do riso, do ânimo e da alegria vibrantes. Sob sua direção, lá vinham os toureiros em suas roupas apertadas, as beldades do circo com suas pernas de meias, e, por fim, lá vinham os desengonçados palhaços, atrasados e reivindicando o riso de todos. Antes que se soltassem os bois, as beldades, sob uma chuva de protestos de alguns marmanjos, despareciam por uma portinhola lateral, ficando na arena apenas os toureiros e os palhaços, estes muito mais ágeis que os outros, pois que, além da graça que faziam com os touros, tinham de cuidar de salvar a própria pele.

Por uma semana, às vezes mais, às vezes menos, era esse o espetáculo oferecido pelo precário Circo e Tourada Pan-Americano. Quando o público escasseava, retiravam-se os módulos de madeira e ferro da arena de touros, dando lugar ao picadeiro, aos trapézios, à corda esticada para o equilibrista, o circo surgia da boca duns e doutros que, enfiando a fuça sob o pano, vinham de lá com as novidades que colhiam.

Para mim, o melhor da presença do circo na cidade era o desfile das atrações que oferecia. Fanfarra com tarol, corneta e tuba em cima da qual se equilibrava como podia um ratinho branco que, coitado, a essa altura da vida, já devia estar completamente surdo. A tuba era tocada por um velho de olhos inchados e vermelhos e uma pança maior que a de Pantagruel. O palhaço Farinha ia na frente, em cima de uma perna de pau de três metros de altura. Dez meninos – e eu estava sempre entre eles – íamos gritando atrás dele:

– Hoje tem marmelada?

– Tem, sim, senhor!

– Hoje tem goiabada?

– Tem, sim, senhor!

– Hoje tem espetáculo?

– Tem, sim, senhor!

– E o palhaço o que é?

– É ladrão de mulher!

E Farinha ria de se acabar para as beldades dependuradas nas janelas, momentaneamente enamoradas do grande artista. No final do desfile ele nos reunia, os meninos que o havíamos acompanhado no desfile, e, pragmático e urgente, fazia, com uma caneta, um “X” na testa de cada um de nós. Essa marca era o nosso ingresso para o circo. Naquele dia a gente só tomava banho do pescoço pra baixo, de noite era só exibir a testa e entrar todo besta para o espetáculo, a testa reluzindo a marca privilegiada para a distinta plateia, o respeitável público.

Contei essas coisas para Cortês. Ele me ouviu e ficou um bom tempo sem falar nada.

– Quero lhe contar uma coisa – disse, afinal.

E, como me dispusesse a ouvi-lo, ele não se fez de rogado:

Era um setembro antigo, um setembro de dias claros e noites amarelas quando assisti à grande estreia do circo que estava em minha cidade. O nome do palhaço era Docinho – vá entender! Ajuntando as pantominas de Docinho às facilidades que menino tem de rir, por pouco eu não tive um faniquito qualquer de tanto que gargalhei naquela noite, ao ponto dos soluços e dos engasgos. Docinho, o palhaço magricela e nanico, transformou-se no centro do meu interesse. Eu logo soube que esse precário herói era louco por farofa de bunda de tanajuras e daria ingresso para o espetáculo a quem lhe trouxesse pelo menos meio cento. E por ser setembro o mês da revoada das tanajuras, de cai, cai, tanajura, na panela de gordura em cai, cai, tanajura, na panela de gordura enchi uma pequena caixa de papelão com perto de uma centena delas – eu, cheio de razão, iria pleitear dois ingressos, ora se ia!

Assim foi que entrei no lugar onde o circo estava armado, indo pelos corredores formados por pequenas tendas que eram as moradias temporárias daquela gente. Eu não fazia ideia de onde encontrar o palhaço e entregar-lhe as tanajuras. Não havia ninguém, aparentemente, um silêncio de deserto. Penetrando cada vez mais pelos corredores, não demorou que ouvisse uma voz desagradável atrás de mim:

– Aqui não é lugar para menino. Dê o fora.

– Mas eu trouxe as tanajuras pro Docinho.

O homem, que havia colocado apenas o rosto por uma fenda, fez uma careta de nojo e, depois de vacilar um instante, disse:

– E a tenda lá dos fundos, à esquerda. Ele gosta mesmo dessa porcaria. Vá, vá, menino, entregue e dê o fora.

Não demorei a encontrar a tenda do palhaço Docinho: ele fizera questão de estampar seu nome em cima da fenda que servia de porta. Quando afastei o pano para espiar lá dentro, pude ver um homem que se parecia com todos os mortais da face da Terra, menos com o palhaço Docinho. Esse desconhecido, recostado, abandonado sobre uma cadeira, tinha nas mãos trêmulas uma velha e indistinta fotografia para a qual olhava tão obstinadamente que não deu pela minha presença.

– Docinho – balbuciei.

Quando ele se virou para mim, com absolutamente nenhuma surpresa, como se me esperasse, ou como se eu me tratasse de uma insignificância, ou como se estivesse completamente alheio ao que ocorria, ou como se nada importasse tão absolutamente quanto chorar, pude ver que o suposto palhaço Docinho, que me levara aos limites do riso na noite anterior, fazia justamente isso: chorava, as lágrimas lhe escorriam pelas faces.

– Sim, sou eu. O que deseja?

Tratava-se mesmo dele! Essa foi uma das maiores surpresas da minha vida. Não pude responder-lhe, deixei a caixa de tanajuras cair no chão e me afastei dali correndo o mais que pude.

Samuel pegou a xícara, olhou o fundo vazio e, depois de depositá-la de volta no pires, me disse:

– Eu nunca soube o que havia naquela fotografia.

– A mulher, a filha ingrata... Os pais falecidos...

– Nunca pude sequer imaginar, não tenho nenhum elemento para compô-la.

– A única coisa certa é que havia nessa fotografia...

– Algo que o levou às lágrimas.

– Nunca pude imaginar um palhaço que chorasse.

– E eu? Imagine! Eu que quase havia estourado de rir dele na noite anterior...

Depois de pedir mais dois pingados, um para ele, outro para mim, Samuel, meu bom e velho amigo, arrematou com essa:

– O fato é que nunca mais, nem uma vez nesta vida, pude voltar a rir de palhaço.

 

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