Na década de 1950, enquanto voava de Varsóvia para algum lugar, Graham Greene sorriu para si mesmo ao se lembrar das várias vezes que seus leitores lhe perguntavam por que ele costumava escrever romances policiais. Seu sorriso era uma espécie de rendição, pois ele não acreditava que um escritor escolhesse seus temas, mas, sim, que era por eles escolhido.
Não é com nenhuma cerimônia que as lembranças encontram dentro de mim, lá onde o tempo faz a curva, uma história guardada sob os sete véus da inconsciência. Desse encontro brota a inquietação, e quando dou conta a história já se instalou, feito uma erva daninha do bem, e surge e ressurge em minha consciência até que se extraia. “Para sobreviver, tens de contar histórias”, prescreve Umberto Eco. Então, assim justificado, conto-lhes uma história antiga, tão antiga quanto esteja eu nos meus dezesseis anos, ou quase. Com duplo proveito: o de extrair essas lembranças e dar-lhes vida própria, e o de reviver uma agradabilíssima e peculiar ocasião do passado cuja memória me é ainda tão cara.
Éramos cinco os mosqueteiros dessa noite fantástica de que lhes vou falar: tio Bastião, irmão caçula de meu pai que, atenciosíssimo com a família, vivia de inventar moda comigo, meu irmão, chamado Tão, e meus primos que, por economia de imaginação, ou por redução da tensão doméstica quanto ao registro civil, chamavam-se, um, Carlos José, e o outro, José Carlos. A noite era 24 de dezembro de 1978, disso me lembro bem, e de São José do Calçado partimos rumo a Bom Jesus do Itabapoana. Tio Bastião estava eufórico, havia prometido uma noite com tripla atração.
A primeira seria uma sessão no Cine Monte Líbano, cinema construído por um visionário libanês na década de 1950 em Bom Jesus do Itabapoana que nada ficava a dever às melhores salas da capital. A enorme sala de projeção contava com mezanino e, com seus assentos somados aos do grande salão, tinha lugar para mil pessoas. Ficava na Praça Governador Portela, lugar de encontro da sociedade de Bom Jesus da Itabapoana principalmente nas noites de sexta e sábado. Nessa noite, um domingo, reuniam-se extraordinariamente não só as famílias em véspera de Natal, mas certamente um grande número de expectadores ávidos pela grande sessão do Cine Monte Líbano, que exibiria um clássico, o filme Tubarão, de Steven Spielberg, chegado para nós com pouco mais de três anos depois de lançado no Brasil, em julho de 1975. Era uma sensação, todos falavam do filme. Uma mocinha algo histérica dizia que iria assistir ao filme com os pés sobre a cadeira, com medo de que um tubarão viesse rastejando pelo piso do Monte Líbano. Tio Bastião, claro, fez logo saber que a mocinha era disparatada e sem educação, e que nós, bravos mosqueteiros, iríamos ficar com os pés onde deviam ficar, ora essa. Ainda que o cartaz do filme, com um enorme tubarão abrindo a bocarra, tenha nos deixado com uma sensação bem próxima do pavor.
Tio Bastião foi um bravo D´Artagnan, que terá vencido sozinho toda a guarda de Richelieu para conseguir-nos ingressos da concorrida sessão. Embrenhando-se na multidão, voltou daí a instantes com os cinco bilhetes reluzentes na mão. “Para a fila”, disse com um despotismo fingido sempre divertido. Até hoje desconfio de que ele havia comprado os ingressos antecipadamente para não correr o risco de nos desapontar, ele sempre pensava em tudo, cartesiano, infalível.
Dos sucessos e insucessos dessa primeira atração não vou falar, pois posso incorrer em lugar-comum. Mas nunca será demais lembrar que o filme Tubarão foi considerado um dos melhores filmes já feitos e teria marcado um momento decisivo na história do cinema. Seja como for, nenhum filme com tubarões chega a roçar a reputação do original, esse a que, nos estertores de 1978, acabáramos de assistir no Cine Monte Líbano e por causa do qual ainda estávamos um pouco confusos e trêmulos.
A segunda atração da noite seria lanchar (palavra nova para mim, que só conhecia almoçar, merendar, tomar café com cavaco e jantar) na Lanchonete Terraço, que ficava no outro lado da Praça Governador Portela. Então, essa segunda atração já se multiplicava em pelo menos quatro. Primeira, a lanchonete, importada das melhores ideias da capital, o que já nos sobrexcitava. Segunda era a grande novidade de um prédio de quatro andares, com oito, nada menos que oito, lances de escada, em cima das quais ficava o iluminado estabelecimento. Já queríamos logo apostar uma corridinha, para ver quem chegava lá em cima primeiro, mas tio Bastião impôs logo uma providencial lição de modos e elegância, sob pena de a visita à lanchonete terminar antes mesmo de haver começado. A terceira atração seria o hambúrguer, essa grande novidade metropolitana para nós acostumados a ter no pão apenas manteiga ou nata de leite misturada com sal ou, quando muito, um aguado molho de carne moída que teimava em escorrer pelos dedos a cada mordida. A quarta novidade, uma extraordinária surpresa, veio dentro do lanche de pão com carne, e a mim, seguramente, se lhe conhecesse os efeitos, poderia ser comparada ao ácido lisérgico das papilas gustativas: o bacon. Não conhecia nenhum sabor que pudesse se igualar ao sabor desse naco de banha suína defumada. É verdade que sobre o fogão de lenha lá de casa o toucinho ficava semanas pendurado, chorando pingos de banha sobre as panelas, mas, quando frito, não tinha senão o sabor de um torresmo já meio passado. Nem as explicações detalhadas de tio Bastião puderam esclarecer a natureza da iguaria que experimentávamos pela primeira vez. Carlos José estabeleceu logo uma regra: era comida de menino rico. Bem fácil de constatar que tinha ele razão, o preço do bacon, só encontrado na época em Bom Jesus do Itabapoana, cidade que, na fronteira norte do Espírito Santo, bem mostrava o quão pés de chulé nós, os vizinhos do sul do Estado, éramos. Eu, que naquela noite, me deliciava com cada naco dessa iguaria burguesa, tive de afazer-me a meu destino de menino pobre que, nos meses, anos seguintes, talvez, enquanto comia toucinho frito, imaginava estar comendo bacon caseiro.
Mas havia ainda uma terceira e última atração para esta noite, uma ocasião única, dizia meu tio. E nós, empanturrados de hambúrguer com bacon, essa oitava maravilha do mundo colhida na Lanchonete Terraço, nem sei se pensávamos em outra coisa senão em voltar para casa e ir rememorar essa noite de delícias na intimidade do travesseiro até que o sono, embalado em gorduras, tomasse conta de nós. Foi nesse estado de ânimo que tomamos o rumo do bairro Lia Márcia, na saída para Itaperuna, à cata dessa derradeira atração. Eram 15 para a meia-noite da noite de Natal de 1978 quando estacionamos em frente a uma pequena e muito simples, mais simples que a manjedoura do Cristo, igreja católica. A terceira atração dessa noite, anunciou-nos tio Bastião, a nós que já havíamos entrado nas atrações que ofereciam nossos sonhos, seria uma Missa do Galo. Uma Missa do Galo, mas não uma qualquer. Ele, exultante, completava: “Uma Missa do Galo totalmente em latim!” Eu juro, juro por todos os santos e juro até por todos os hereges, ponham na minha conta razões para jurar que eu juro, eu juro que me apropriei do entusiasmo de nosso querido tio, mas o Diabo rondava minha alma, pondo em meus olhos um sono que devia vir do mais profundo dos círculos infernais. Nem ouso falar dos outros três, eles que digam por si. Mas a coisa também não ia bem para o lado deles.
Tudo nessa igreja era muito rudimentar. Nada tinha a ver com o que se tornaria anos e anos depois de uma obra interminável a Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus, que ficava justamente na Praça Governador Portela, onde nossa noite havia começado, atrás de uma paliçada que nada permitia dela ver, e que integraria o reduto de uma ala conservadoríssima da Igreja Católica no norte fluminense. Mas foi na rudimentar igreja do bairro Lia Márcia, longe dali, que um padre teve a feliz ideia de rezar uma missa em latim no Natal de 1978, onde estávamos nós, bravos mosqueteiros dessa noite inesquecível. Padre que, de costas para nós, o que me pareceu um sacrilégio, afinal surgiu e começou: “In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti.” Ao que tio Bastião, todo feliz da vida, respondeu: “Amen.” De minha parte, todo o tempo que restou até o “dominum vobiscum”, estive eu consciente de minha gratidão a meu querido tio por me haver proporcionado tal noite. Eu ainda não sabia, mas já me deixava embalar pelo princípio de que tudo é bom sobre a Terra, e que, ainda que suficientemente bom, a tudo se pode acrescentar ainda mais certo teor de graça e ventura. Por isso talvez que essa memorável noite proporcionada por tio Bastião ainda dure e há de ainda durar por tanto tempo, se é que um dia vai ter fim.