Escabrosas notícias contemporâneas

Posto seja notório o olhar sombrio de meu concidadão, fruto, atalhava ele, “das penosas angústias das leituras e das escabrosas notícias contemporâneas”, a postura em que encontrei Samuel Cortês naquela tarde deixou-me perturbado. Com os dedos rígidos segurando a asa da xícara do fumegante café com leite habitual, tinha o olhar tão obstinadamente fixo numas distâncias além da parede em frente que mais parecia uma estátua canhestra no horário mais agitado de nossa padaria, em Paul. Quase não me respondeu ao cumprimento, tanto se demorou a perceber minha presença. E olhe que eu já havia me sentado na cadeira em frente e ocupado uma terceira com uns embrulhos, o que não se faz sem algum estardalhaço.

– Mas o que houve, meu caro, que você está tão abatido? – perguntei, tão logo ele se deu por minha presença (o que fez com um suspiro e um leve tremor, como se sofresse alguma espécie de febre).

– Ora, meu caro, são as distrações do inconfessável – justificou-se. – Tenho verde a fronte? – perguntou-me com certa ironia, ao que, tendo eu dito que não, completou: – Ufa! Não morrerei logo.

– Quem garante? – fiz um sinal a Inocência, a alucinante garçonete gordinha saída de uma tela de Renoir.

– Lembra de Neca Bento? Isso, esse mesmo, aquele que ia espiar a mulher no salão de beleza para ver se ela estava mesmo lá. Pois é, não andou sumido? Ninguém o via. Mas o vi: quase caí duro. Tinha tal amarelidão na cara que mais parecia uma espiga de milho melada. Desse dia até sua morte não se consumaram três semanas.

– Mas você falou em pele verde.

– Verde ou amarela, meu amigo, é morte certa. Tudo é bile, tudo é o mal que se espalha.

– Um café com leite, Inocência – disse eu à garçonete gordinha mais simpática de Paul, que a essa altura esperava com os braços cruzados que Samuel e eu percebêssemos sua presença.

– Ninguém me chama de Inocência, só o senhor – ela me disse uma vez, toda boba de lisonja.  

O nome composto de Inocência era Inocência Cristina, Inocência Cristina Silva Gomes. Todo mundo a chamava Cristina, outros de Cris (essa odiosa mania da abreviação que acho insuportável), e havia até quem chamasse Quiqui. Eu não, chamava-a Inocência e recebia de volta uns rubores tão inocentes que me dava pena das pessoas de boa vontade como ela, que não fazem a menor ideia das boas intenções da humanidade.

– Siri pequeno gosta de isca grande – insinuou Cortês mal Inocência se afastou.

– Ora, Samuel, tenho por Inocência o maior respeito.

– Respeito? Não sei como a bunda dessa moça não cai, tanto você a seca. Aliás, por que você a chama Inocência tão baixinho?

– Imagine, Samuel, se vou compartilhar Inocência com alguém. Chamem-na de Cris, Cristina, Quiqui, Inocência é só minha.

Depois do ar de entendimento de Samuel, cheio de insinuações e cinismo, animei-me a perguntar-lhe novamente:

– Mas o que é que você tem, afinal?

– Meu amigo, amanheci hoje de cabelo arrepiado, e arrepiados estão até os cabelos dos recônditos mais recônditos do corpo. Parecia que havia levado um choque, quando me vi ao espelho quase saí correndo, tanto susto. Meio-dia, a hora em que o Diabo anda solto, não me resolvia a sair de casa, amedrontado. Somente a proximidade da Ave-Maria e uma comichão na boca pelo café com leite deste estabelecimento me fizeram botar a cara na rua, mas ainda estou pasmo. Descobri-me um conspirador, uma aberração, um monstro, um demônio, coisa que o valha. Tenho medo do que possa fazer quando passe o último Ângelus e caia a noite. Nem que passe o dia fazendo preces e me persignando serei capaz de me livrar de meu estigma. Que aliás, meu caro, é o seu também, o de nossa querida Inocência, do paspalhão que dá troco no caixa, do engraxate e do vendedor de laranjas, de quantos cidadãos supostamente de bem que trafeguem aí pela rua em suas tarefas diárias. Estamos todos condenados a ser, para os nossos grandes empresários, homens ilustres, funcionários públicos e, principalmente, para os homens das casas legislativas e chefes do Executivo, uma péssima influência. Somos todos uns degenerados.

E ante o meu olhar aterrado, quer dizer, olhar de quem não sabia se ria ou se fingia, arrematou:

– Com o aval do senhor ministro da Justiça desta República Federativa...

– ...que... – ah, sim, claro, eu também ouvira o disparate.

– ...colocou em nossas costas mais um imposto: o de sermos péssimas referências para os nossos homens ilustres. Estou aterrado comigo. Imagino-me agora capaz de tirar a merenda das criancinhas, de sumir com a verba dos desvalidos, de surrupiar o recurso dos hospitais, de desviar de todas as formas qualquer recurso público disponível. Já estou pensando em cobrar de Inocência um deságio, uma comissão, para pagar este pingado que estava aqui na minha xícara.

Dito isto, Samuel Cortês cobriu com as mãos a cabeça e parecia querer enfiar a cara na xícara vazia. Enquanto isso eu mergulhava nas palavras textuais de Sua Excelência o Sr. ministro da Justiça, arrematando seus desvarios: “Vivemos numa sociedade que até o síndico do prédio superfatura quando compra o capacho.” Não sei quanto tempo se passou até que eu fosse novamente trazido à realidade.

– Senhor... senhor... o senhor está bem? – demorei-me a perceber que Inocência me chamava.

– Ah, sim, obrigado, desculpe-me, Inocência.

– Seu café com leite deve estar gelado, deixe-me trocá-lo por um fresquinho.

Ela começou a se afastar com a xícara na mão:

– Inocência?

– Sim?

– Desculpe-me, mas... você poderia me dizer se minha pele está verde? Ou, quem sabe, amarela?

 

Leia outros textos