E eu que nem nunca havia pensado na dificuldade de texto encomendado sobre assunto pré-determinado? Foi o que de ocorrer me ocorreu quando recebi a circular 008/95 com o terrível Prezado Escritor. O tema do nono livro dos Escritos de Vitoria? Bem já sabe o leitor que se trata dos Escritos? Pois é. Igrejas é o tema proposto. Eu repetia, tentando me convencer: igrejas, e metia-me em teias de dificuldades cada vez mais espessas.
O interessante é que a primeira ideia que me ocorreu foi um diálogo que tive com um amigo, há coisa de dois anos, no alto de uma colina em Afonso Cláudio. Debruçados à cerca ambos - e a tarde se ia -, disse-lhe, sem a menor introdução ao assunto:
- Vê ali, onde estertora o rio, sob o bambuzal? Bem se poderia ver o dia em que os colonizadores chegaram a esse vale e, com ares de bons cristãos, tomaram os filhos às mães.
Não havia como não nos sentirmos herdeiros da barbárie, concluí, espantado de minhas voltas no tempo, naquele caso fruto dum silêncio de olhos postos na evolução longínqua das águas do rio.
Quase podia ouvir meu amigo dizer:
- A história é má, mas não lhes vai bem, aos habitantes de outro tempo, a indignação contemporânea, meu caro.
Mas a ideia, ou melhor, a lembrança, assim ocorrida, varreu-a um vento, e eu não lhe segurei a cauda. E por não reencontrar o fio da meada, a dificuldade da tarefa avultava cada dia contra a tempestade cerebral em que um texto encomendado de assunto e prazo me coloca.
Procurei no Elmo Elton e seu Logradouros antigos de Vitória matéria para um sonetinho. Bem podia ser que ruas antigas e escadarias me ensejassem os decassílabos de que eu necessitava. Depois saí com o Rubem Braga e o Luiz Guilherme a passeio pelo centro de Vitória e, aí sim, até visitei com eles mais o Humberto Capai umas capelas antiquíssimas, mas o passeio, extremamente agradável em companhias tão ilustres, não me bastou à facilidade da pena.
Depois, ora, restava aos dias passarem, e uma tarde surpreendeu-me do outro lado do cais, onde a baía de Vitória lambe o continente, na excelente companhia de Ana Maria. Ela, estranhamente silenciosa aquela tarde - sentados ambos no banco rude do atracadouro da Comdusa -, falou, inopinadamente:
- A cidade tem hoje um ar londrino. Veja as nuvens negras contra a torre da catedral, já os morros de Vitória não se veem - e, protestando contra a chuva: - Que aguaceiro medonho.
Eu:
- Londres é longe.
Ela:
- Mas é por essas mesmas águas que se vai a Londres, e essas mesmas águas irmanam as pequenas e as grandes capitais do mundo.
E, muito embora inutilmente, as águas da baía de Vitória ficaram teimando contra minha cabeça. Mas não demorou muito que eu começasse a imaginar os nativos brincando na areia das praias onde hoje a ilha é cimento e cal, postos em tarefas de preguiça e coito. Pagãos aos olhos santos dos europeus que entraram por essas mesmas águas. Incréus e fornicadores, necessário foi que se impusesse sobre as feras a cultura europeia muito asséptica. E por não se afazerem os olhos europeus, que são, miscigenados, os mesmos olhos meus, a tais e ignominiosas atividades, é que, em nome da fé d'além mar, se extinguiram os nativos e seus gozos pecaminosos nas praias onde hoje a ilha é cimento e cal.
Quando meti meus pés no ancoradouro, enredado pela premência da tarefa imposta pela circular 008/95 e pela sinuosidade do tempo, sabia que a história é má, e que maus talvez sejam os feitos humanos.
Já sozinho, entregue ao movimento de toda tarde, via Ana Maria afastar-se lançando olhos londrinos a tudo. Pensei: subo à Cidade Alta, as portas da catedral haverão de estar agora escancaradas aos pecadores e seus átrios, seus mosaicos e os pequenos bafejos do tempo haverão de tornar possível o cumprimento da tarefa. Mas posso também ir à igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e, ainda que todas as seringas e preservativos largados nas pedras de seu passeio me mostrem a resistência heróica do pecado, encontrar ali bom assunto para uma crônica penosa. Mas não há também a igreja do Carmo? Onde fica mesmo? São tantos os nossos templos: igreja do convento de São Francisco, capela Santa Luzia, igreja de São Gonçalo, ora, meu caro - digo a mim mesmo -, assunto lhe não falta. Penso em chamar Ana Maria de volta:
- Venha, minha amiga, dê comigo um giro pela rota santa. Quem sabe não atravessamos o portal do tempo? Preciso de matéria a uma crônica, ande, vamos.
Já Ana Maria perdia-se na multidão imensa. Quanto a mim, consulto o relógio e vejo que estou em cima de minhas horas, como todos os dias. Já no ônibus, pela Beira-Mar, lanço olhos às águas que Ana Maria queria do Tâmisa, já temeroso de ver o que meus olhos negam. Quando viro a curva do Saldanha, decido que não visitarei nossas igrejas, nem não mais pensarei nelas, e que melhor é mesmo que ignore o encantamento de suas sacadas, átrios, altares e me proteja bem do vento úmido que o tempo bem se aventuraria a bafejar bem no pleno do meu rosto já não muito crédulo.
Texto originalmente publicado em Escritos de Vitória - Igrejas.