Biscoito de polvilho

Pegue 500g de polvilho azedo, um copo pequeno de leite, um copo pequeno de óleo, três ovos e sal a gosto, coloque tudo na batedeira e deixe bater até formar uma massa homogênea. Depois é só fazer um furinho numa sacola, enchê-la com a massa e ir fazendo os biscoitinhos, assá-los em forno alto por uns 15 a 20 minutos, ou até ficarem sequinhos. A receita é simpática e pode até ser que dê certo, mas nem na tarde do dia de São Nunca os biscoitos vão ficar parecidos com os biscoitos de polvilho que minha avó paterna, dona Aneci, fazia nos dias de fazer quitanda.

Minha avó, as mãos trêmulas, numa bacia espalhava delicadamente certa quantidade de polvilho, polvilho de araruta – sabeis, por acaso, o que é a araruta, coisa que não existe mais de ser ver, quase nem existe de se imaginar? – e despejava conchas e conchas de uma quentíssima gordura de porco para escaldar, depois acrescentava ovos e sal e mexia até o ponto dado por ela como ideal. Enquanto a massa repousava um pouco, na cozinha externa avivava o fogo no fundo do fogão de lenha, para o forno ficar bem quente, ideal para assar os biscoitos de polvilho.

Sempre havia biscoito de polvilho em casa de dona Aneci. Ela nos oferecia pedindo “apare a mão”, as mãos cheias de biscoitos. Esses biscoitos, meus caros, eram como as sombras frescas no calor da infância, como a água caudalosa, como o bálsamo contra as inquietações da meninice.

Embora seja muito apreciado, não se sabe ao certo a origem do biscoito de polvilho. O que se conhece é que o polvilho azedo, feito de araruta ou de mandioca, foi herdado dos índios – a mandioca substituiu a araruta no preparo do polvilho por ser esta de cultivo muito difícil, de modo que raramente se encontra o polvilho de araruta. Câmara Cascudo afiança que no século XVIII as cozinheiras já preparavam o biscoito de polvilho e o serviam a seus senhores. Parece que a receita do bom biscoito de polvilho que minha avó fazia vinha de Minas Gerais, receita herdada por ela de suas antepassadas também vindas de Minas Gerais. Mas a receita, ao que tudo indica, não tarda a desaparecer nesse redemoinho inclemente do tempo e da modernidade: os biscoitos de polvilho industrializados nunca serão como o bom e velho biscoito escaldado em abundante banha de porco e assado num forno a lenha a temperatura altíssima. Nem serão como os biscoitos de minha avó, que há anos se foi depois de bem cumprida tarefa neste mundo de meu Deus.

Mas eis aí, num domingo desses, na feira de Gurigica, o meu encontro com uma senhora de certa idade, a tez escura, o lenço branco no cabelo, a voz mansa e curta, vendendo em sua banca não só um biscoito de polvilho muito parecido com o de minha avó – não haverá igual –, mas uma diversidade de derivados. Passei a frequentar a feira mais por causa dela. Quando me via chegando espichava um sorriso contido contrastando com a prodigalidade dos produtos que, ao que consta, fabricava na cozinha de sua casa num bairro de Vila Velha. E eu voltava para casa com duas ou três sacolas de biscoito de polvilho e a alma cheia de compensação. Sabeis seu nome? Nem eu. Onde ela mora? O endereço completo? Sei apenas que às segundas vendia o que sobrava da feira dominical numa das calçadas do Parque Moscoso. Comprei dela, por vários anos, e fielmente, os biscoitos de polvilho. Até que ela também desaparecesse.

Era de dar dó, dizia-me a amiga que comigo ia à feira, o meu desamparo nos primeiros domingos em que já a não reencontrava. Ainda não desisti. Aos domingos ainda vou à feira para encontrar vazio o espaço de sua barraca. Ninguém sabe dela: talvez esteja descansando, dizem uns, parece que andou doente, dizem outros. Nunca me disseram que houvesse morrido.

Volto de minhas incursões domingueiras acalentando a esperança de que ela, se assim houver sido, assim como minha avó também tenha bem cumprida a sua tarefa neste mundo de meu Deus.

Mas a sensação é de que minha avó morreu pela segunda vez.

 

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