Diatribes de fantasma no
sopé de um morro histórico

Em nenhum outro local de Vitória paira, a céu aberto, o silêncio manso e envolvente que gosto de desfrutar na rua Marcondes de Souza, no calcanhar do morro de São Francisco, onde me descobriu o fantasma do centro histórico da cidade. 

- Vous ici, tal qual um fantasma! – festejou ele.

Eu podia dar qualquer desculpa por estar naquelas bandas. Mas preferi ser sincero acreditando que, de fantasma para fantasma, visto que assim ele havia me considerado, minhas razões fossem entendidas.

- Gosto de me enfronhar no silêncio espesso que reina nesta rua – disse eu. – Num espaço de mágica, me ponho fora do mundo.

- Fico feliz da vida com a sua sensibilidade. Eu também, quando passo nesta rua, me sinto no âmago do meu jazigo.   

- Não caia no exagero ao interpretar minhas palavras, meu caro fantasma. Mas já que você se diz feliz da vida, e aos meus olhos parece realmente cheio de saúde e disposição, devo concluir que ficou bom das tonteiras que quase o abateram num voo sobre o Penedo? Lembro-me que você passou por esse mal-estar, conforme me contou em um dos nossos encontros. Foi graças a algum tratamento milagroso prescrito pelo seu amigo dr. Chapot Presvot?

- Desta feita, meu digno, devo minha pronta recuperação ao dr. Silva Mello, recorda-se dele? Foi quem praticamente descobriu e propagou Brasil adentro e Brasil a fora o potencial curativo das areias monazíticas de Guarapari. Ele faleceu há mais de quarenta anos, mas ainda vem a Vitória e vai a Guarapari, de tanto que se afeiçoou à Cidade Saúde. Uma afeição que o faz protestar cada vez mais contra a forma como se deteriorou a expansão urbana da cidade. Eu tive a sorte de encontrá-lo em Vitória e, sempre prestativo e gentil, me recomendou uma esticadinha até Guarapari para absorver as propriedades energéticas da praia da Areia Preta. Contrariando meu comodismo de ilhéu vitoriense segui o seu conselho. E bastou uma aterrissada sobre a praia, numa manhã de sol radioso, para restaurar minhas desvalidas forças incorpóreas. Estou me sentindo um fantasma renovado, pouco me faltando para me tornar mens sana in corpore sano – disse o fantasma soltando uma gargalhada repugnante.          

- Que boa notícia, meu amigo – comentei descaradamente, procurando evitar que ele percebesse a mentira estampada no meu olhar.

- Não precisa mentir – disse o fantasma pegando-me em flagrante delito. – Eu sei que você preferia que eu sumisse para sempre.

- Não diga isso, meu caro fantasma. Além de estimá-lo como amigo constante, considero-o muitas vezes meu próprio heterônimo (e desta vez não estava mentindo). E sem dar chance a qualquer outro comentário, indaguei: - Mas de onde você está vindo? Por certo não é da praia da Areia Preta...

- Estou vindo do convento de São Francisco, ou do que sobrou dele, meu ínclito – respondeu o fantasma. - Fui visitar meu avô materno, que foi sepultado no cemitério que havia ali.

- Como ele está passando? – perguntei dando à nossa conversa o tom mais natural do mundo dos mortos.

- Inconformado por não saber onde foi parar sua sepultura, desde que o cemitério do convento foi desmontado. Nem um mísero cochicholozinho sobrou para ele.

- Onde o seu avô costuma ficar agora? – mordiscou-me a curiosidade.

- Vagando pelo morro. Ou então, nas noites de vento forte, enfurnado com todos os outros ex-sepultados na capela de Nossa Senhora das Neves que, aliás, se assemelha a um mausoléu solitário, nos fundos do convento.   

- De quem mais você está falando?

- Ora, meu digno, falo em gênero e número de todos os que tiveram seus jazigos revolvidos pelo padre Leandro Dell’Uomo, o carcamano reformador do convento... Para falar a verdade, só quem não reclama é frei Pedro Palácios que vaga pelo São Francisco em absoluta paz de espírito. O frei é uma alma simplória que um dia ascenderá a beato. Ninguém como ele tinha motivos de sobra para reclamar, uma vez que seus despojos sumiram completamente depois que foram removidos do convento da Penha para o de São Francisco. O imperador D.Pedro II, quando esteve em Vitória em 1860, ainda teve oportunidade de anotar a inscrição em latim que havia sobre a lápide do túmulo em que os restos do frei foram enterrados, junto com o seu inseparável cajado. Que perda irreparável! I-rre-pa-rá-vel!  

- A perda do frei ou do cajado? – não freei o desrespeito.

- De ambos... – replicou o fantasma sem me recriminar.

- E padre Leandro, você também o vê por lá? – perguntei uma vez que seu nome veio à baila.

- Não vejo, nem quero ver! Para mim, não passa de um vândalo.

- Mas não se esqueça de que foi ele quem criou o antigo Orfanato Cristo Rei, obra de caridade cristã que funcionava no convento – atrevi-me a defender o carcamano.

- Mas precisava descaracterizar um dos mais antigos cenóbios do Brasil? Você pensa, meu ínclito, que os uivos agônicos que se ouvem à noite no morro de São Francisco são do vento que sopra da Fonte Grande? Uma potoca! (e o fantasma bateu na bochecha cheia de ar para extrair um pipoco mal-cheiroso). São os lamentos das almas desarvoradas, à cata de seus restos desbaratados! Você nem imagina as coisas que acontecem à noite no morro de São Francisco! É horripilante. Ho-rri-pi-lan-te! A eternidade, meu digno, é muitas vezes tragique. Apesar de tudo, é do morro que, paradoxalmente, emana a sensação de bem-aventurança e quietude que tanto lhe apraz nesta rua.

- Nunca pensei nisso!         

- Eu também não – disse o fantasma. - Quem chamou minha atenção para o fato foi o coronel Marcondes de Souza, patrono deste logradouro. Você já o encontrou por aqui? Ele, como eu, não é fotofóbico, e aparece num repente, de dia ou de noite. Às vezes surge até garbosamente fardado, com as botas lustrosas e as esporas de prata.

- Vem a cavalo? – brinquei sem que ele absorvesse a piada.

­- Au contraire. Vem em voo curto e sem alarde, malgrado seu fardamento chamativo. O coronel, écoute-moi, é uma alma simplíssima, nem parece que governou o nosso Estado. Tem a palavra fácil e gosta de recordar o passado. Seu assunto predileto é a revolta do Xandoca que pôs em risco a posse de Bernardino Monteiro, na sucessão do próprio coronel. Nessa época, se bem me lembro, você ainda não era nascido. Eu, que sou monteirista juramentado, aliás, jeronimista de quatro costados, digo sempre para o Marcondes: ‘A revolta do Xandoca, mon cher ami, foi uma rematada pantomima que só perde em inutilidade histórica para a Coluna Prestes. Uma patuscada, diria meu dileto amigo, o comendador Deodato. Nunca poderia sair vitoriosa, inda mais contra os Monteiro, eis o âmago da questão. Sem falar que os tais rebelados pretendiam fazer de Colatina a capital do Estado. Pensa bem, meu amigo, o que era Colatina em 1916, nos cueiros da sua existência, à mercê dos bugres das selvas do rio Doce! Bugres que comiam casca de árvore e defecavam cipós em corda!’ Mas o coronel sempre levou a sério a revoltinha histérica que, de mon point de vue, não passou de caiporismo político. Nunca entendi por que o pobre do Marcondes guardava dessa opereta um sentimento de culpa tão profundo, a não ser se foi por ter ocorrido no fim do seu governo!  Então tenho que repetir para ele a minha catilinária contra os fracassados xandoquistas porque se há uma coisa que não sei é ficar calado. Enquanto eu tiver língua, vou falar o que sinto e o que penso, doa a quem doer, digam que estou certo ou errado, que falo pelos cotovelos como se ainda os tivesse... A verdade é que me concedo a prerrogativa de usar e abusar da minha condição de livre pensador para externar meu pensamento! Você é testemunha disso... Testemunha inconteste! In-con-tes... – repetia o fantasma, enquanto se dissolvia em reticências.

O pior é que ele tinha razão. Sou testemunha inconteste de sua verborragia compulsiva e desconfio que seja o único capixaba vivo (não sei dos mortos) a sofrer os efeitos da facúndia do fantasma do centro histórico de Vitória, pelo menos enquanto sua língua se mantiver incorruptível. 

Até quando, meu Deus, até quando, sobretudo agora que está de espírito renovado graças às propriedades regenerativas das areias de Guarapari.  Em que péssima hora você apareceu, ilustríssimo doutor Silva Mello!

 

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