A história não se passou comigo. Mas não resisto à tentação de contá-la, aditando pontos porque, como diz o povo, quem conta um conto acrescenta um ponto.
Ele, um senhor de meia idade, faixa dos sessenta, foi atendido com a máxima cortesia. A balconista era jovem e prestativa – um amor de garota que, de bonificação, ainda exibia para deleite dos olhos duas covinhas que lhe mimoseavam a face quando sorria. E as covinhas sorriam por nada e por tudo.
Ele entrara na loja para comprar uma camisa social e saíra com duas. Ambas de cor azul-marinho, lustrosas, com um discreto riscadinho branco, porém sem exagero no brilho nem no riscadinho.
“Combinam com os cabelos do senhor”, ela disse.
“Está me chamando de velho?”, perguntou ele, aceitando a insinuação.
“Estou falando de elegância...”, saiu-se inteligentemente a balconista, florindo as covinhas.
Feita a compra, ele perguntou se podia pagar em cheque. Ela disse que não tinha problema.
Ele preencheu o valor da compra e parou na data.
“Que dia é hoje?”
“Hoje são seis de agosto...”, disse ela, abrindo as estrelinhas na face.
“É verdade... Hoje é o dia da ‘Bomba’...”, disse ele.
“Bomba? Que bomba? Vão jogar alguma bomba?”, indagou a jovem assustada.
“Não, minha filha. Estou falando da bomba atômica que foi jogada em Hiroxima para acabar com a guerra no Pacífico.”
“E teve guerra no Pacífico?”, estranhou ela o paradoxo.
Ele sorriu complacentemente e esclareceu: “Pode parecer contraditório uma guerra no Pacífico. Mas ela aconteceu de 1942 a 1945.”
“Eu ainda não tinha nascido”, disse ela como se desculpando por ignorar a guerra no Pacífico. “Mas o senhor já, não é?”
“Eu tinha um ano de idade...”, informou ele.
“Um aninho e ainda se lembra da bomba?”
“Não é que eu me lembre dela... Mas foi um acontecimento histórico. O mundo nunca mais foi o mesmo depois da Bomba.”
“Só por causa de uma bomba?”
“Por causa dessa Bomba”, disse ele enchendo a boca para engrandecer a potência do petardo.
“Que dizer que foi uma bomba poderosa...?”
“Em poucos segundos arrasou Hiroxima toda. Matou milhares de pessoas.” E adiantou explicativo, antes que ela fizesse qualquer comentário: “Eram japoneses. Hiroxima fica no Japão.”
“Então foi longe daqui...”, disse a jovem aliviada. “O Japão não é do outro lado da Terra? Quando aqui é dia, lá é noite?”
“É realmente um pouco longe”, concordou ele.
“E quem jogou a bomba?”
“Foram os americanos.”
“Não é à toa que eu não gosto deles... Como é que a bomba foi jogada?”
“De um avião chamado Enola Gay.”
“Um avião de gays...?”
“Não, querida! O nome foi dado em homenagem à mãe de um dos pilotos, se não me engano, a mãe do comandante. Ela chamava-se Enola. E gay, em inglês, quer dizer alegre. Daí Enola Gay. Para os pilotos seria uma missão divertida, o lançamento da bomba.”
“Que filhos da puta... desculpe a expressão”, disse botando a mão na boca.
“Mas eu concordo com você.”
“Coisa de americano! E acabou com a cidade para sempre?”
“Na hora foi tudo destruído. Mas hoje ela é uma grande metrópole, porque depois foi reconstruída, apesar de conservar a triste memória da guerra. Uma bomba atômica nunca se esquece”, disse ele sem qualquer traço de ironia em relação à balconista.
“E como foi reconstruída?”
“Com a ajuda dos americanos.”
“Eles destruíram a cidade e depois a reconstruíram? O senhor está falando sério?”
“Foi assim que aconteceu.”
“O senhor não acha isso uma doideira?”
“Completamente.”
“Ainda bem, porque eu tinha medo que o senhor achasse uma coisa natural. Aí eu ia ficar biruta mesmo”, disse ela reacendendo as covinhas.
Um breve silêncio instalou-se entre os dois. Ela olhou o cheque em sua mão, como se dele tivesse se esquecido, pegou as caixas com as camisas e perguntou:
“Quer que embrulhe pra presente?”
“Não precisa.”
Em seguida, levou o cheque até a registradora, depositou-o na gavetinha, e voltou com as camisas dentro de uma sacola preta, com a marca da camisaria impressa em cor dourada. Ele recebeu, agradeceu o atendimento e já ia saindo quando ela perguntou:
“Como é mesmo o nome da cidade destruída pela bomba?”
“Hiroxima”, disse ele. E repetiu baixinho para si mesmo: “Hiroxima, mon amour!”
“Obrigada”, disse ela com as covinhas em florescência. “Eu queria ter a memória que o senhor tem!”