Um duelo literário

O duelo era o seguinte: escrever um texto sobre um parente que tivesse exercido forte influência em nosso destino e formação pessoal. Ganharia quem escrevesse o texto mais original e criativo.

Combinamos, eu e meu amigo – os dois duelistas -, que na hora do julgamento seríamos rigorosamente imparciais, nem eu puxaria a sardinha para a minha brasa, nem ele puxaria a brasa para a sardinha dele. Se não chegássemos a um acordo sobre o ganhador, buscaríamos um tertius da nossa confiança, desde que escritor como nós, para o voto de Minerva.

O confronto se daria no dia seguinte, em local e hora combinados. Não precisaríamos de luvas nem padrinhos. Nossas armas seriam os escritos com que nos enfrentaríamos. No fundo, tratava-se de um inusitado embate literário entre mim e meu amigo escritor.  Que vencesse o melhor. E quem perdesse seria ainda condenado a três bolos de vibrante palmatória.

Da minha parte, escolhi um tio e tutor como personagem-patrono do meu texto; o meu adversário preferiu o seu avô materno.

Feita a escolha, lancei-me diligentemente ao trabalho enveredando pelas trilhas do panegírico ao meu querido tio, poeta e pintor que me encaminhou desde menininho para o gosto da Literatura e das Artes Plásticas. Num estilo expositivo caprichado e em linguagem rebuscada de que meu personagem era merecedor, reconstituí-lhe a vida e exaltei-lhe as virtudes pessoais e o bom gosto estético, mantendo-me dentro do limite máximo do espaço textual (nada além do tamanho de uma crônica) em que eu e meu competidor combinamos nos conter.

Quando nos encontramos no dia seguinte, tão seguro eu estava da superior qualidade do que havia escrito que dei ao meu adversário a primazia da leitura do seu texto.

Agradecendo a gentileza, ele se pôs a ler, pausada e fluentemente, e com um indisfarçável tom de ironia em sua voz:

O DEDO DO MEU AVÔ

Tenho na minha mão, por herança genética, um dedo do meu avô materno. É o indicador da mão direita, igualzinho ao que ele tinha. Veio diretamente para mim sem passar por minha querida mãezinha em cuja mão não havia nenhum dedo que se parecesse com o meu ou com os do pai dela. Recebi-o, portanto, numa transmissão avoenga, exclusiva e privilegiada. Mas privilegiada não é bem o termo. O correto seria dizer pesada transmissão hereditária.

Porque este que tenho na mão direita é um dedo circunspecto como compete a um dedo com a ascendência que tem o meu – dedo de linhagem, descendente em linha reta e direta de um homem respeitabilíssimo como era meu avô, ao contrário do sacripanta leviano e femeeiro em que seu neto se tornou.

Já se vê pelo que acabei de contar que o dedo que meu avô me herdou, sem me perguntar se o queria receber ou não, se eu ficaria honrado ou não com o legado que me transmitiu, é dedo que se faz repressor, razão pela qual se eu fora consultado a tempo diria que não gostaria de herdá-lo para com ele conviver. Porque é dedo que me recrimina gravemente, ainda que em silêncio repreensivo – o que acontece praticamente a toda hora - pelos deslizes e leviandades que cometo (que não são poucos, diga-se sem alarde), sobretudo com as mulheres que me caem sob o... dedo.

Por falar nelas, narro um episódio em que entrou o dedo-neto do dedo de vovô envolvendo esfuziante êxtase amoroso a que conduzi uma distinta senhora, ainda na fase das preliminares a que nos entregávamos.

Foi gozo incontrolável que a prostrou de lado ao meu lado, e por ela foi resumido numa frase de obsequioso embevecimento:

- Puxa, que dedo você tem!

- É o dedo do meu avô – não contive a revelação, o que a fez saltar da cama assustadíssima.

Para acalmá-la tive de explicar por que ancestral derivação o dedo indicador de vovô veio parar na minha mão direita e, da minha mão, nas suas feminilidades mais recônditas. 

A franqueza com que lhe falei fez com que retornasse ao leito e, curiosa, aliás, curiosíssima, quisesse examinar o dedo que tanto prazer acabava de lhe dar.

Pedi mentalmente licença ao meu avô e dei a mão àquela que ma havia solicitado.

Ela a dedilhou atentamente comparando entre si cada um dos dedos que a formavam que, por sua vez, comparou com os da mão esquerda, que também a seu pedido lhe estendi para a necessária confrontação anatômica.

- Devo admitir que o dedo de seu avô é o mais formoso de todos os que você tem, com um ar de dignidade e nobreza que não se nota nos demais – disse ela sem disfarçar o ar malicioso, enquanto acariciava amorosamente o dedo que mantinha entre seus dedos, terminando por aplicar-lhe um breve ósculo com os lábios bicudinhos.

- Que meu avô não me ouça, mas é também o mais destro dos meus dedos destros – respondi agradecido e orgulhoso pelos encômios e afagos que o dedo de vovô acabava de receber. – É mais habilidoso até do que o polegar – exagerei no agradecimento.

- Vejo ainda que ele tem porte de dedo médio e se equipara em tamanho e proporção ao dedo médio de que é vizinho. Um dedo muito bem encorpadinho... – disse ela, deliciando-se com as próprias palavras, sem largar o meu dedo de vovô entre seus dedos, ao qual novamente beijocou de leve, bem de levezinho. 

Não preciso dizer que o encontro tão auspiciosamente iniciado graças ao dedo de vovô alcançou a seguir dimensões de prazer incomparáveis.  

O que eu não disse, porém, à minha amiga foi o quanto o dedo de meu avô resistiu em participar das carícias e cafunés sensuais a que eu forçadamente o obriguei numa grande refrega intimista: eu, do meu lado, com o peso da minha luxúria pecaminosa; e o dedo de vovô do outro, resistindo relutante a intrometer-se por onde o levei a se intrometer impondo-lhe o meu comando férreo. Posso até dizer que de tal forma ficou nervoso e agitado com o domínio que minha lascívia ardente lhe impôs que atribuo ao transe vibrátil e encrespado que o acometeu, numa derradeira tentativa de recusa que se mostrou irrecusável, o elevado grau de paroxismo e convulsão que provocou em quem metediçamente provocou.

Talvez um dia eu tenha de pagar caro pelo desrespeito a que tenho submetido o respeitável dedo de vovô. Mas até que isso aconteça, eu peço perdão a Deus e ao meu querido avô e vou animando a minha vida com as alegrias que me possibilitam o dedo que vovô me deu, apesar das graves e mudas censuras que dele advêm, por sinal com justo cabimento.  

Terminada a leitura, meu amigo voltou-se para mim e disse, premiando-me com um sorriso indulgente e sardônico: - A vez é sua. Leia o que escreveu.

- Não será necessário – respondi abatido. – Você ganhou. (O que mais eu podia dizer?)

- Então, dê cá a mão à palmatória – ordenou ele com o sorriso já agora apenas sardônico.

- Que palmatória? – perguntei por não ver nenhuma à vista, embora me lembrasse do trato que fizemos.

- A que eu trouxe prevenido – disse ele entre risadas, tirando do bolso uma palmatória de couro que, sem piedade, aplicou triplamente na mão de derrotado que tive de lhe estender.  

Se doeu?

Claro que doeu. Porém, menos, muito menos do que minha derrota literária.    

 

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