Se os tempos ainda fossem os de antigamente, a rua que hoje se chama Cerqueira Lima, ex-ladeira da Matriz, no centro histórico de Vitória, talvez se chamasse ladeira do Corrimão. Sim, porque existe ali, preso na prumada lateral do edifício que faz esquina com a Duque de Caxias, um longo corrimão metálico para apoio de quem sobe ou desce por aquele trecho perigoso e íngreme.
Bendito corrimão em que me agarrei com unhas e dedos para escapar do escorregão desastrado que ia me prostrando ao solo!
“Foi por um triz, meu digno!”, ouvi a voz do fantasma do centro histórico de Vitória comemorando ao meu ouvido. “O comendador Deodato ainda o quis amparar, mas você se recuperou a tempo com o desempeno de um mancebo, apesar da idade!”.
“O comendador está aqui?”, perguntei recomposto da minha derrapada sem dar maior importância à zombaria do fantasma.
“Não direi que em carne e osso, mas em espectro mortiço, que ele, como você sabe, teima em manter invisível aos olhos dos vivos porque não se conforma com a figura de fantasma que tem agora. O máximo que deixa transparecer é o cavanhaque branco, resquício do homem bem apessoado que foi em vida”, disse o fantasma do centro histórico.
“O cavanhaque à Benjamin Constant”, comentei relembrando o encontro anterior que tive com o comendador e com o fantasma na Praça Costa Pereira.
“Bem lembrado, meu digno”, disse o fantasma. “E a propósito de lembranças, o comendador está falando da queda que a escritora Júlia Lopes de Almeida quase deu, em 1911, coincidentemente no mesmo lugar em que você escorregou. Só que não havia corrimão para salvá-la. Tinha ela saído do Hotel Europa, que ficava logo ali (e o fantasma apontou para a esquina oposta), a fim de conhecer a matriz de Nossa Senhora da Vitória, na companhia do comendador. Ainda bem que Deodato estava ao lado dela e a amparou dando-lhe uma mãozinha de socorro como quase fez com você. Um beau geste que evitou que a grande escritora se estatelasse nas pedras pé de moleque da ladeira, já pensou que desagradável seria? Ela estava em Vitória a convite oficial do governo do Estado, feito por Jerônimo Monteiro. Eu já lhe disse, meu digno, que Deodato era amigo de Júlia Lopes? Tão amigo que a ciceroneou em muitas andanças pela cidade. Lembra-se que ele quer lhe contar algumas dessas passagens?”
Claro que me lembrava. A ameaça tinha sido feita no encontro anterior que tive com o comendador. E porque me lembrava, rezava para que ele não se valesse daquele reencontro para relatar suas memórias. Um rememorar que teria o fantasma por intérprete, uma vez que o comendador, além de não se deixar ver, só usava sua voz morta para se comunicar de fantasma para fantasma.
“Talvez o momento não seja este”, tentei escapulir da alça de mira a que me via exposto na ladeira do Corrimão, quero dizer, da Matriz, ou melhor, Cerqueira Lima.
“Isso n’est pas três poli da sua parte! Será agora ou nunca!”, reclamou o fantasma do centro histórico, falando certamente sob pressão do seu dileto amigo.
“Então, que seja agora”, disse eu polidamente conformado.
“O Deodato está dizendo”, disse o fantasma do centro histórico de Vitória sem perder tempo, “que são muitas as passagens que pode contar como membro do comitê que acompanhou Júlia Lopes pela cidade de Vitória e também quando foram ao Convento da Penha, em Vila Velha. Mas como ela mesma foi a primeira a relatá-las por escrito, ele prefere falar da peixada de papa-terra que a amiga provou pela primeira vez na Praia do Suá, sobre a qual ela nunca escreveu uma linha sequer. Você quer ouvir?”
“Vamos à peixada”, disse eu, armando-me de paciência e prestando-me a que se rompesse o ineditismo do relato.
A partir daí o fantasma se fez viva-voz do comendador, transmitindo a conversa que entre os dois rolou festiva e solta. “Deodato está contando”, começou o fantasma, “que ele, na companhia de sua digníssima consorte, Dona Esbelta, foram de bonde para a Praia do Suá, junto com Júlia Lopes. O bonde era o transporte mais prático para se ir à Praia do Suá, que despontava como o primeiro balneário procurado pela população de Vitória com barracas de praia armadas para banhistas, a ponto de Júlia Lopes chamá-lo bairro elegante, num exagero de retórica. Com seu espírito detalhista, Deodato está dizendo que eles foram trajados ao estilo da época, dona Esbelta e Júlia Lopes com vestidos longos e levando sombrinhas rendadas chamadas chapéu de sol, e ele usando terno com colete e de bengala. A peixada foi oferecida por dona Naná, uma cozinheira de mão cheia. Peixada tão saborosa quanto às de dona Esbelta, só que as de dona Esbelta, que era natural da Bahia, eram feitas com azeite de dendê, não muito ao gosto do comendador, que as preferia à moda capixaba, com urucum e sem dendê, estou repetindo certo, Deodato? Ele confirmou o que eu disse. Está lembrando também, escuta só, que naquele tempo não havia restaurantes na Praia do Suá e as peixadas em casa de dona Naná tinham que ser previamente combinadas. Elas eram servidas sob um telheiro de pau a pique, no quintal da residência. Uma casa térrea, herdada do pai dela, pescador português nascido em Póvoa do Varzim, um dos primeiros moradores do Suá. Quando foi isso, Deodato? Quando...? Ele disse que foi por volta de 1906, ano em que ali chegaram os portugueses. Está dizendo ainda – fala um pouquinho mais alto, Deodato! - que havia no quintal da casa um fogão de barro, próximo de uma grande mesa de madeira, com bancos inteiriços para os comensais se acomodarem à vontade. Somente amigos in pectore de dona Naná participavam das peixadas, servidas em panelas de barro tiradas direto do fogo para a mesa.
“E qual a impressão que Júlia Lopes teve da peixada?”, perguntei movido pelo meu bairrismo capixaba.
“A impressão? Diz para ele, Deodato!”, retrucou o fantasma, apressando-se em repassar a resposta: “Júlia Lopes profetizou que um prato daqueles ainda seria consagrado como dádiva culinária do Espírito Santo! Eu, da minha parte, lamento não ter ido a esse almoço para testemunhar pessoalmente a profecia de Júlia Lopes, feita no início do século passado! Ela também previu que o porto de Vitória seria um dos mais ativos do Brasil. Que mulher de visão!”, elogiou o fantasma do centro histórico. “Não foi à toa que Jerônimo Monteiro a convidou para conhecer o Espírito Santo!”
“Por que você não foi ao almoço, sendo tão amigo do comendador?”, não deixei a pergunta se evaporar.
“Você tem razão. Éramos amigos em vida e somos na morte. Mas para meu dissabor, tive que me resguardar em casa devido a uma bronquite asmática que quase me antecipa ao túmulo. Sempre fui muito propenso a bronquites, não sei se já lhe disse. O que me salvou foi o xarope São João. Ainda hoje me condói a alma ter perdido uma peixada daquelas”.
Neste ponto da conversa, uma curiosidade irrefreável se me extravasou em palavras: “Me diga uma coisa, fantasma: por que você e seu amigo Deodato falaram o tempo todo em peixada? Ainda não se falava em moqueca capixaba?”
“Belle question, meu ínclito. Mas pelo que me lembro a expressão moqueca capixaba não era de uso comum em Vitória, não é mesmo, Deodato? Deodato está ratificando o que eu disse e... Não, meu dileto Deodato, com esta versão eu não posso concordar!”
Por não ter ouvido Deodato, perguntei o que ele havia dito.
“Deodato disse que a expressão moqueca capixaba deve ter surgido no governo de Florentino Avidos. É a mania que ele tem de ligar Florentino às grandes transformações havidas no Espírito Santo. E sabe baseado em quê, no caso da moqueca? Devido à construção do Mercado da Capixaba no governo de Florentino, tornando a venda dos pescados mais acessível à população de Vitória.”
“Mas o que tem a ver o mercado com a origem da expressão?”, perguntei sem conseguir estabelecer um liame de razoabilidade entre alho e bugalho.
“O quê, Deodato? Eu ouvi sim, não precisa gritar! Ele está dizendo”, disse o fantasma, “que você, por ser historiador, é que deve pesquisar a ligação.”
“Diga ao comendador que vou transferir o encargo para o professor Fernando Achiamé, o maior conhecedor da história do Espírito Santo na atualidade. Tenho certeza que ele vai matar a questão com prontidão e firmeza”.
“O comendador está elogiando sua saída inteligente. Ouviu a gargalhada que ele deu?”, perguntou o fantasma.
Era a mesma gargalhada que eu já ouvira antes, semelhante a um soturno escapamento de ar comprimido, mas que agora me soava agradável porque se afastava gradualmente, ladeira do Corrimão acima. Atrás dela, para minha dúplice alegria, embalou o fantasma do centro histórico de Vitória, gritando esbaforido: “Espere por mim, comendador! Vamos subir juntos!”