O anacoluto

Acima da pequena estante de vidro corrediço, junto ao tapume da obra em construção, lê-se em letras maiúsculas e vermelhas o anúncio convidativo: RETIRE AQUI UM LIVRO OU FAÇA A SUA DOAÇÃO. BOA LEITURA.

Resolvi me fazer doador em solidariedade à louvável iniciativa de difundir livros e estimular leitores.  

Escolhendo ao acaso meia dúzia de velhos e desusados livros didáticos, lá fui de coração em festa e alma leve fazer escoteiramente a minha doação – minha boa doação do dia!

Antes, porém, de realizar a entrega dos livros sentei-me num dos bancos defronte da estante – são dois ao todo – e, num gesto ocasional, dei uma rápida folheada no Compêndio Didático de Português, para 4ª série ginasial, edição de 1971, que tinha em mãos.

O livro pertenceu a uma das minhas filhas, no tempo em que havia o curso ginasial.

No lance de abertura das páginas ao jogo do acaso bati no capítulo que trata das figuras de sintaxe, começando pelo anacoluto, sua definição e exemplos. E li: “Anacoluto é a figura de linguagem que se caracteriza por uma quebra na construção, por desvio que se dá na mente do autor.” Exemplos: “Eu, que era branca e linda, eis-me medonha e escura” (Manoel Bandeira). “A casa, não sendo grande, não podiam lá caber todos.” (Machado de Assis).

Mais não dizia o compêndio de língua portuguesa sobre o anacoluto, o que me levou a concluir que caberia à competência dos professores de português explicar didaticamente para seus alunos, dentre os quais se incluíra a coitada da minha filha nos idos de 1971, o desvio mental que levou Bandeira e Machado à quebra do sentido lógico na construção das frases dadas como exemplos. 

E ia eu continuar embarafustando-me por novas considerações sobre a importância prática do ensino do anacoluto (tanto quanto das outras figuras de sintaxe da língua portuguesa mencionadas no compêndio), quando alguém na obra em construção gritou alto e bom som, acima da minha cabeça e a poucos metros de onde eu me encontrava: “Manda a massa!”

Ergui a vista e dei de cara com o pedreiro gritador no primeiro pavimento da construção, o que me animou a fazer um teste, e perguntar-lhe, vendo que ele também tinha dado de cara comigo: “Você já ouviu falar em anacoluto?” 

Sem entender direito o que indaguei, respondeu-me lá do alto: “Ele não trabalha aqui”.

A resposta, a princípio absurda à luz da definição de anacoluto, soou-me mais do que lógica se bem analisada à altura de um pedreiro absorvido pelo seu duro ganha-pão diário, numa obra de construção civil.

Dando-me por satisfeito com essa conclusão da mais pura sapiência, digna de um compêndio didático de psicologia para antigos estudantes ginasiais, depositei na estante os livros que a ela se destinavam e tratei de me entregar, de coração escoteiramente leve e alma em festa, às corriqueiras tarefas do dia a dia, ali tão louvadamente iniciadas.

Só não pude evitar, enquanto me afastava da estante de livros a ser doados, que me acudisse à lembrança o seguinte trecho do Compêndio Didático de Português, para 4ª série ginasial, ano 1971: “As principais figuras de sintaxe da língua portuguesa são: anacoluto, elipse, pleonasmo, silepse, hipérbato, assíndeto, polissíndeto e anáfora.”       

Compreendi então, cheio de ufanismo, o quanto é rico de sutilezas e segredos o nosso querido idioma pátrio com suas anáforas, polissíndetos, assíndetos, hipérbatos, silepses, pleonasmos, elipses e anacolutos...       

E fiquei a imaginar se comigo não concordariam emocionados Manoel Bandeira e Machado de Assis, mas, sobretudo a minha filha que estudou pelo Compêndio Didático de Português, para 4ª série ginasial, no ano de 1971 e acabou se formando em... medicina! 

 

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