Um desastrado encontro literário

O desastrado encontro literário teria ocorrido no hotel Majestic, me disseram. Não no Majestic de Paris, ou noutro Majestic de qualquer cidade do mundo, mas no Majestic de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo.

Ali, o senhor M, cujo nome completo pouco importa, dotado de um grande coração “mecenário” voltado por inteiro para estimular altruisticamente a literatura capixaba, sempre tão carente de ajuda, tendo tomado conhecimento do célebre encontro do hotel Majestic de Paris, na noite de 18 de maio de 1922, reunindo os escritores James Joyce e Marcel Proust, resolveu promover algo semelhante em Vitória, guardadas, nem é preciso dizer, as devidas proporções entre os dois casos.

O raciocínio que levou o moderado mecenas de aldeia a tomar a ousada iniciativa, contrariando sábios e prudentes conselhos para desistir da ideia temerária, pode ser expresso numa indagação até que pertinente, dentro de perdoável e bisonha perspectiva provinciana: por que não promover na cidade de Vitória um tête à tête entre o romancista R e o poeta P, que, apesar de não se darem um com o outro, eram apontados pela crítica literária como os intelectuais vivos mais representativos da literatura do Espírito Santo?

O encontro entre eles valeria ainda como oportunidade de ouro para aproximar dois intelectuais que se viam com maus olhos e se farpeavam com maus bofes, mas que, uma vez conciliados, poderiam unir seus talentos literários para projetar as letras capixabas muito além das acanhadas fronteiras do Estado, onde normalmente ficam ronronando em berço esplêndido.

Movido desse saudável propósito, o abnegado mecenas garantiu o comparecimento das duas primas-donas prometendo-lhes bancar, com tiragem de trezentos exemplares e capa colorida, a edição da obra que cada qual viesse a escrever dentro de um ano e um dia, a partir da realização do auspicioso evento.

Assim programado, assim foi feito. E a noitada literária que teve lugar entre o poeta P e o romancista R, intermediada pelo mecenas M, pode ser descrita como se segue, meio ao estilo do que escreveu Ford Maddox Ford sobre o encontro de Joyce e Proust:

Três poltronas de espaldar baixo foram trazidas e colocadas próximas entre si formando uma trindade semicircular sobre um tablado improvisado, coberto com tapete vermelho, no salão de refeições do Majestic, convertido em auditório ocasional para a solenidade especialíssima. O romancista R e o poeta P sentaram-se nas poltronas laterais, separados pela poltrona do meio onde se acomodou o mecenas M, com a nobre e delicada missão de intermediar os trabalhos. A menos de dois metros deles, meia dúzia de gatos pingados formavam o distinto público interessado no excitante espetáculo, prestes a acontecer.

Após o boa-noite de praxe, correspondido por outro boa-noite uníssono miado pelos gatos pingados, o mediador, salientando a relevância da sessão, solicitou que todos cantassem de pé o hino oficial do Estado, encarregando-se ele próprio de puxar, com voz garbosa, os versos iniciais da canção laudatória e eufônica: “Desta terra sem par a grandeza/ O meu canto não diz nem traduz,/ São cachoeiras de força e beleza,/ São montanhas cobertas de luz...”

Terminada a cantoria laudatória e eufônica, saudada com algumas palmas displicentes, disse o mediador, mastigando diplomacia, que muito se esperava da oportunidade que reunia ali, pela primeira vez face a face, os dois maiores nomes da literatura capixaba, R, com incomparável atuação no campo do romance, e P, com magistral desempenho no campo da poesia, para, de boa vontade e espírito desarmado, realizarem ambos uma erudita e respeitosa troca de impressões sobre a leitura que cada um fizera da última obra que o outro publicara, conforme foi antes acertado na organização do encontro. Disse ainda, entrando na parte propriamente literária da sessão, que ia começar dando a palavra ‘a você, meu caro romancista’, o quanto bastou para que o poeta se empertigasse em sua poltrona e fulminasse o mediador com uma pergunta desconcertante: por que primeiro ele?  

Colhido de surpresa, o interrogado voltou-se para o interrogante e, sem disfarçar seu constrangimento, tentou se justificar: Não há nenhuma intenção de favorecimento ao começarmos pelo romancista... 

Então, comece por mim, cortou o poeta.    

Empertigando-se por sua vez na poltrona onde até então se almofadara mudo e calado, trombeteou o romancista: A palavra já me foi dada. Quem fala primeiro sou eu!

O mal-estar palpável que se apossou do mediador generalizou-se pelos gatos pingados da assistência. E na desesperada busca de uma saída para superar a querela provocada pelas suscetibilidades arranhadas e feridas, o mediador, empenhando-se em controlar seu nervosismo, viu-se forçado a declarar que se estava diante de grave e crucial impasse, num encontro de magna importância para a literatura capixaba. Talvez, prosseguiu hesitante, o mais indicado para solucionar com imparcialidade o conflito inesperado que emperrou o andamento normal dos nossos trabalhos, seja recorrer a Dona Sorte, tirando-se cara ou coroa para decidir qual dos nossos dois ilustres convidados falará em primeiro lugar. 

Recebida com aplausos e palavras de apoio que pingaram dos pingados gatos do auditório, a judiciosa sugestão mereceu repulsa imediata de cada um dos palestrantes: Não vim aqui para ter minha palavra orientada pelos azares da sorte, protestou o poeta, quicando na poltrona. Muito menos eu, a quem me foi dada a palavra em primeiríssimo lugar, quicou também do outro lado o romancista.

Um silêncio nédio e pesado baixou sobre o recinto. No ponto em que a sessão chegara, ou do qual nem saíra, a prometida e proveitosa noitada com o poeta P e o romancista R, contrafação quixotesca da que houve em Paris entre Joyce e Proust, tinha morrido no nascedouro.

O que restava por fazer foi então feito pelo desalentado mediador, único responsável pelo falido e infeliz evento que pretendia ser um colóquio literário memorável, mas que redundou num fracasso grotesco e vergonhoso: vejo, disse ele, que infelizmente devo dar por encerrada esta reunião da qual tanto se esperava, mas que se revelou um desperdício histórico, com desfecho frustrante para todos nós, amantes da literatura com l maiúsculo que se faz em nossa terra.

Não por minha culpa, vociferou o romancista, abandonando sua poltrona e atirando longe o livro de poesias que tinha na mão, para os comentários que jamais proferiu.

Nem tampouco por culpa minha, retrucou o poeta, levantando-se possesso da poltrona e arremessando para o alto o romance que mantivera sobre os joelhos, que foi se esborrachar no tapete vermelho depois de um elástico voo parabólico. 

Ao mediador coube, por castigo derradeiro, pegar os dois livros jazidos no assoalho e entregá-los aos respectivos donos, num gesto de acadêmica educação, tendo o cuidado de não errar de autor para que deles (livros e autores) se visse livre para sempre. E, ao deixar cabisbaixo e de intelecto arrasado o improvisado auditório do Majestic de Vitória, ainda teve de aturar o comentário de um dos gatos pingados, piadista que se retirava a sua frente: é nisso que dá querer apoiar a literatura capixaba! 

 

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