O fantasma num relance passageiro

Eu e ela paramos no hall de entrada do museu da memória e das artes. Eu que saía, ela que entrava para ver a exposição de fotos históricas da cidade de Vitória. Eu, tal como sou, e vocês sabem. Ela, uma professora jovem, aflorando cauta sensualidade no olhar, no modo simpático de falar e rir, no leve toque que de vez em quando dava no meu braço, com um dedinho camarada, sem forçamento de intimidade. Se bocejasse ali na minha frente, seria um bocejo inconveniente, mas sensual. 

Não houve bocejo. O que houve, naquele encontro de passagem, foi troca de palavras entre dois amigos, eu elogiando a exposição que acabava de ver, ela ansiosa por vê-la para colher sugestões para o trabalho de dissertação que estava terminando para o curso de doutorado em História Social, na Universidade. 

Subitamente, interrompi o que falava. A interrupção brusca, movida pelo meu instinto de defesa, chamou a atenção da minha amiga.

“Viu algum fantasma?”

Foi o que tinha acontecido, causa do meu silêncio repentino: eu acabava de ver o fantasma do centro histórico de Vitória passar pela calçada diante da porta de vidro do museu. Caminhava devagar, em passadas noctâmbulas apesar do meio-dia, sorumbaticamente absorto em espectrais recolhimentos.  Graças a esse escafandrismo intimista não me vislumbrou no saguão do museu, vulnerável a uma possível abordagem da sua parte, a estibordo do seu olhar.     

“Vi o fantasma do centro histórico de Vitória”, informei à minha amiga.

“Você ficou biruta ou está brincando comigo?” interrogou arregalando os olhos.   

Posto em xeque, expliquei-lhe, com força persuasiva, que costumava ser vítima de um fantasma que flanava pelo centro histórico de Vitória e sempre me pegava para conversas longas e cansativas.

“Sobre o que vocês conversam?”, inquiriu aparentemente convencida das explicações sem que eu entrevisse segunda intenção em sua pergunta, nem no levíssimo toque de dedo no meu braço.

“Sobre o que der na cabeça dele. Mas principalmente sobre coisas do passado, de que o fantasma se recorda graças à memória privilegiada que ainda conserva”.

“Que coisas?”, perguntou traindo no olhar um corisco de vivacidade acadêmica que eu também não soube interpretar.

“Coisas de um passado sem tempo fixo. O fantasma foi um sujeito longevo. Nasceu no século XIX e faleceu por volta de 1970. Assunto não lhe falta sobre Vitória antiga. Para falar a verdade, ele é um poço de fantasmas, um repertório ambulante de informações históricas sobre Vitória de outrora, que viveu na plenitude de sua capacidade física e cívica. Em suma: todo ele pertence ao passado”.

“Então preciso que você me apresente ao seu amigo”, disse ela excitadíssima, transformando em palavras as reais intenções que me ocultara com as perguntas anteriores. “Tenho de entrevistá-lo para minha tese de doutorado. O tema é O provincianismo urbano na cidade de Vitória, de 1910 a 1940: valores e desvalores de uma identidade insular utópica”. E arrematou com nervosas telegrafadinhas no meu braço.

“O título é o que você falou?”, perguntei sob o efeito da cálida sensação compressiva que remanescia em minha pele.   

“É. Por quê?”

“Achei-o longo”.

“Hoje é assim na Academia: as dissertações de mestrado e doutorado têm títulos que funcionam como ementas. Minha dissertação está bem adiantada, faltando a formulação teórica.”

“Com as indefectíveis citações de Foucault, Walter Benjamin, Gramsci e Ginsburg... Não é esse o receituário teórico do mandarinato que impera na Academia?” ironizei.

“Dança-se conforme a música. Mas agora que você disse que tem um fantasma seu amigo que conversa sobre Vitória antiga não deixarei escapar esse morto providencial, já que não encontrei ninguém vivo que me falasse de Vitória no período que estou pesquisando.”

“E o que quer saber dele?”

“Ouça, meu amigo: na minha dissertação pretendo demonstrar que a ilha de Vitória foi uma utopia que se fez realidade, na temporalidade em que eu a demarquei. A cidade e sua gente formaram um micro-universo de pertencimento utópico, numa dimensão holística até hoje despercebida, que explicito no meu estudo porque somente eu, modéstia à parte,  atinei com essa verdade fascinante que saltava aos olhos dos historiadores e sociólogos. A entrevista com o fantasma do centro histórico de Vitória vai ajudar a fundamentar a minha tese, mesmo que tenha de reescrever alguns trechos. Porque, se entendi o que você disse, o fantasma  viveu a utopia de que estou falando, ou melhor, viveu imbricado nessa utopia feita realidade cujas significâncias icônicas e paradigmáticas chegaram até nós como marcos simbólicos e cognoscíveis de uma idade de ouro”.

“A que marcos você se refere?” perguntei embarcando nos arroubos imaginosos e eruditos da minha amiga.

“Aos marcos que fizeram de Vitória o que Vitória foi nessa época: o Eden Park; o Parque Moscoso; o Cassino Trianon; o Teatro Melpômene; o Palácio do Governo e sua notável escadaria; o Cais do Avião; a Cidade Alta e Baixa - dois espaços opostos e complementares, interligados pelo Bonde Circular; e até a rivalidade secular e religiosa entre peroás e caramurus. E isso é tão somente uma apreensão sintética do geral, num reducionismo figurativo. A visão de um todo em suas dissonâncias integrativas, em fragmentos desmembrados para efeito de análise crítica e comparativa. Seja sincero: seu amigo fantasma não vai poder dar uma contribuição excepcional sobre essa clivagem social de um lócus insular que tornou viável a utopia de Morus, em terras capixabas?

Curvei-me àquela retórica enroscada, reconhecendo que o fantasma do centro histórico de Vitória era a pessoa certa (frisei a expressão) para o que ela desejava, apesar de decididamente não compartilhar dos seus delírios visionários sobre o utopismo vitoriense. E apimentei, com malícia divertida, toda a sua empolgada expectativa dizendo que o fantasma teria muito a contar sobre o que ela chamara de “significâncias icônicas e paradigmáticas” de uma ilha utópica, visto que ele testemunhou a inauguração do Parque Moscoso e do Eden Park; frequentou o Cassino Trianon; tocou pianola durante as fitas do cinema mudo, exibidas no Melpômene; esteve no Cais do Avião quando ali pousaram Gago Coutinho e Sacadura Cabral; usava diariamente o Bonde Circular e, sobretudo, tinha sido um peroá apaixonado, nas acirradas disputas com os caramurus pela devoção a São Benedito. Quando lhe disse por último que o fantasma hospedou em sua casa o engenheiro Justin Norbert, construtor da escadaria do Palácio, minha amiga quase teve uma exultação dionisíaca.

“Mamma mia! Pelo que lhe é mais caro, me apresente logo ao fantasma!”, disse ela, revelando no rosto e nas palavras o contentamento jovial de quem descobrira o elo perdido que daria plausibilidade inconteste à tese que defendia com paixão.    

Prometi fazer o que estivesse ao meu alcance para promover o encontro. Mas adverti que achava que não ia ser fácil.

“Por quê?”

“Porque desconfio que depois que meu amigo virou fantasma ele se tornou misógino”.

“Derrube esta barreira preconceituosa, por favor, é tudo que lhe peço”, disse ela angustiada, o dedinho camarada tremelicando no meu braço. “Porque só há uma coisa que impediria meu encontro com um fantasma: é se houvesse o risco dele me contaminar com alguma bactéria ou vírus que afetasse minha saúde. Como você sabe, eu sou hiper-hipocondríaca. Esse perigo não existe, não é mesmo? Ou o fantasma exala algum odor mórbido ou cospe perdigotos quando fala?”

“O mal dele, minha querida, é só o bafo fermentado que espalha, mas que você pode evitar ficando longe de sua boca falastrona, como eu faço quando conversamos. Até hoje não me causou nenhum malefício, exceto enjôos momentâneos durante nossos diálogos”, senti-me na obrigação de avisar.

“Que péssima notícia você me dá! Meu hipocondrismo não abre exceções para mau hálito. Portanto, meu querido amigo, só me resta uma saída: você é que vai entrevistar o fantasma no meu lugar. Preparo um questionário bem completo e você o aplica”, disse contrariada com o imprevisto surgido.

“E você vai citar o fantasma nas referências bibliográficas?”, perguntei maldoso.

“Claro que não. Usarei as informações meramente para um enquadramento de época, na configuração verossímil da existencialidade utópica de uma Vitória permeada por valores e desvalores sociais que a demarcaram numa performance temporal sem similares urbanos, entendeu?”

Eu não havia entendido, embora me resignasse ao papel de entrevistador que ela reservara para mim, num preito de gratidão às várias vezes em que o seu dedinho amigável me picotou afetuosamente o braço, linguagem tátil e secreta cujo verdadeiro sentido me escapava. E para encerrar o assunto, arrisquei, numa saideira inofensiva: “O que eu vou ganhar se aplicar o questionário?”

A resposta veio imperturbável: “Você ganha o direito de prefaciar o livro que publicarei com a minha tese, se for aprovada.”

Dei uma boa risada e disse, antes de nos despedirmos: “Escreverei o prefácio desde que o fantasma do centro histórico de Vitória me ajude. Serve assim?”

“Serve”, ela disse.

 

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