Fantasmagorias no Cais do Avião

Quando Gago Coutinho e Sacadura Cabral pousaram o Lusitânia nas águas da baía de Vitória a cidade estava em pé de festa para recebê-los. 

Quem me contou foi o fantasma do centro histórico da cidade, que estava lá para ovacionar os pioneiros da travessia aérea do Atlântico sul.

“Tirei o chapéu para eles, meu digno. Meu chapéu de palhinha, comprado na Casa do Queima, de Amorim & Cia, lembra-se dela? Eu estreei o chapéu com um par de polainas brancas e um terno de casimira feito sob medida na grande alfaiataria Resemini, de Resemini & Leone. Eles eram correspondentes em Vitória de Carlo Pareto & Cia, Agentes de Nápoles”, disse o fantasma. “Como o tempo voa!”

Eu tinha ido ao Cais do Avião, em Santo Antônio, para tirar umas fotos do velho aeroporto, hoje restaurado. Ao me preparar, na manhã ensolarada de junho para fotografar a parte alta do prédio onde se lê o nome Victoria, o fantasma meteu a cara ebúrnea no visor da minha digital. Ignorando o susto que me deu, soltou o bafo:

“Alvíssaras, meu digno, por tê-lo nas proximidades da minha eterna morada. Acabo de deixá-la para o meu voo matinal, e tive o agrado de avistá-lo.”

A morada do fantasma era seu túmulo no cemitério próximo ao Cais do Avião.

“O agrado também é meu”, correspondi com polidez à abordagem indesejada.

“Cotidianamente nesse horário, assim que me levanto, dou uma planadinha sobre o Moxuara, estico ao Mestre Álvaro e retorno pela Pedra dos Dois Olhos, em Fradinhos, para me exercitar. Antigamente eu ia até a ponta de Tubarão. Hoje sou obrigado a evitar a poluição que reina naquelas plagas devido às crises de asma que ainda me acometem. Não sei se já lhe disse que morri de enfisema agudo.”

“Lamento muito a sua morte” disse eu.

Ele veio em meu consolo: “Não lamente porque afora as asmas passageiras não tenho do que me queixar. Estou em paz com a morte e desfruto de ampla liberdade para ir aonde quiser. E quando descortino um amigo como você baixo para um dedo de prosa. E veja que notável coincidência: estamos no mês de junho, o mesmo em que, em 1922, baixaram no Cais do Avião os dois aviadores lusitânios, como eu chamo Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Não demora faz cem anos. Quando isso acontecer, espero que haja uma grande comemoração cívica em Vitória, em honra dos dois heróis aviadores à qual não faltarei, claro que em espírito. Eu tenho Sacadura como ídolo por transpor o Atlântico pilotando um aparelho mais pesado do que o ar. Um reide audacioso que seria hoje para mim a coisa mais natural do mundo, isto é, do mundo em que me encontro, ir e voltar a Portugal pelo ar em alguns instantes. Naquela época, foi para Sacadura e Gago uma façanha extraordinária.” 

“Se bem entendi você admira mais Sacadura Cabral do que Gago Coutinho. Ou estou enganado?”

“Engano nenhum, meu digno”, confirmou o fantasma. “Embora Gago também tivesse o seu valor, o piloto do reide foi Sacadura. Ele é quem manobrava o manche. Gago Coutinho era apenas um oficial naval. Ouve só: um oficial naval voandona cabine dupla do Lusitânia como navegador de bordo. Ouve só: navegador de bordo! Sabe por quê? Por ter inventado o sextante de bolha que naquela época servia para orientar a navegação aérea. Gago Coutinho ou qualquer outro – você ou eu, quando eu estava vivo – podíamos estar ali, de sextante no colo, conversando com Sacadura para ele não dormir na viagem. Pelo menos é o que eu acho.”

“Um gago com quem Sacadura podia conversar?”, não perdi a deixa para o trocadilho barato.

O fantasma abriu um sorriso oco, antes de aquiescer: “Gostei da pilhéria! Calha ao que eu penso.”

Dispensei-me, porém, de contradizê-lo em relação aos méritos que eu também via em Gago Coutinho. Conhecia o fantasma o suficiente para saber que era um cabeça-dura, se assim se pode dizer, quando se arraigava a um ponto de vista. Já que tinha de aturá-lo até que lhe desse na veneta levantar voo e sumir, preferi aproveitar a oportunidade para saciar minha curiosidade:

“Como é que a população de Vitória soube da vinda do Lusitânia? Algum pombo-correio antecipou a notícia?” 

Ele tornou a me brindar com seu sorriso lúgubre e esclareceu: “Pelo cabo submarino da Western, meu ínclito. O cabo foi inaugurado em Vitória um mês antes da chegada dos dois ases das asas. Gostou do ases das asas? Criei-o para você ver que eu também sou espirituoso...”

“Nunca tive dúvidas sobre essa sua qualidade”, disse eu sem que o fantasma pescasse o duplo sentido da tirada.
  
Passei então a uma segunda indagação: “Juntou realmente muita gente para receber os lusitânios, como você os chama?”

“Vitória em peso estava lá. O povo foi para o Cais do Avião a pé, de bonde, de bote... Eu tive o privilégio de ir na lancha do Porto, a convite do meu dileto amigo, o comendador Deodato, gente da melhor honradez. O embarque foi no cais da Alfândega. O Deodato até que estava meio indisposto por causa de uma constipação estomacal que só melhorou com elixir paregórico, receitado pelo Dr. Aguirre. Como você sabe, o Aguirre era médico da Saúde do Porto, pessoa boníssima. Na lancha iam também o presidente do Estado, o coronel Nestor Gomes, e o bispo D. Benedito de Souza Alves. Foi sua reverendíssima quem fez o discurso de acolhimento aos dois heróis, comparando-os a Ícaros vitoriosos. Deixe-me ver se me lembro de uma passagem da sua eloquente alocução.”

O fantasma fez uma pausa para um mergulho no baú da memória de onde saiu atacando de novo: “Lembrei do que o bispo disse sobre Sacadura e Gago Coutinho, parodiando Camões. Preste atenção no jogo de imagens e de palavras: ‘Ícaros vitoriosos que da Ocidental praia lusitana, por ares nunca de antes voejados, amerissaram em Vitória numa consagradora vitória da moderna aviação.’ Eu estava bem ali, perto daquela pilastra onde há pouco você tirava retratos, admirando a poética do  discurso. Ainda me arrepio todo ao lembrar das palavras que ouvi.”

“Como você consegue fazer isso?”, perguntei tomado pelo espanto.

“É porque sinto vibrar em mim a mesma sensação que a oratória episcopal me causou naquele dia”, explicou o fantasma.

“Não me refiro ao seu arrepio, mas ao fato de você ter esticado o braço até tocar a pilastra em que eu estava”, corrigi o seu entendimento.

Mais uma vez tive de suportar a visão de um sorriso cavernoso antes da resposta.

“Qualquer fantasma faz o mesmo pela variabilidade da densidade ectoplásmica.”

E mais que depressa, diante da cara de ignorância que eu elaborei, ele enunciou uma proposição que deve ser de conhecimento comezinho no mundo dos abantesmas:

“A densidade do ectoplasma se alonga na extensão direta da distância percorrida e se reduz no sentido inverso do percurso realizado.”

“Esta eu não sabia”, disse eu pela premência de justificar a minha expressão de idiota.

“Trata-se de um princípio metafísico que só se aprende depois de morto. Nem sei se fiz bem em revelar para você antes da hora”, disse o fantasma.

“Prometo guardar segredo”.

“Não é mister”, retrucou sem pestanejar. “Mais cedo ou mais tarde todos vão acabar aprendendo-o por experiência própria. Mas não quero continuar atrapalhando o seu diletantismo fotográfico com nossa adiantada conversa, ainda que agradabilíssima para mim, de forma que vou m’embora. Mas, por favor, não tire o meu retrato porque perdi na tumba a minha fotogenia de outrora.”

Com este apelo amistoso, apesar de para mim desnecessário, o fantasma levantou voo aproveitando o vento nordeste que soprava no Cais do Avião como provavelmente o fizeram Sacadura Cabral e Gago Coutinho quando prosseguiram viagem para o Rio de Janeiro, no ano 1922 da era cristã.

 

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