Novamente a cadeira

Num certo verão em que tranquilamente me apresentava numa exposição de móveis de vanguarda, no conforto de um museu com ar refrigerado, avistou-me de repente um cronista.

A impressão em mim causada pelo estranho acontecimento foi tamanha que, se fosse capaz de sair da minha condição de objeto inanimado e artesanal – uma cadeira dotada de encosto, braços e assento feitos de arame grosso - para passar a uma cadeira viva, a primeira coisa que faria seria escrever uma crônica digna do inusitado incidente.

De saída, confirmaria que quem estava a me olhar era realmente um cronista. Sobre isso não podia haver a menor dúvida porque o observador tinha cara de cronista e petulância de cronista dado o seu modo enviesado de me analisar e seu falso jeitão de entendido em arte mobiliária vanguardista. Mas só de contemplá-lo, parado à minha dianteira com seu indefectível olhar embromador, vi – o que todo mundo podia ver - que do fino espírito da arte do mobiliário funcional-decorativo ele não entendia patavina. Era um bárbaro explícito.

Mas este seria apenas o começo do meu texto. 

Porque escreveria ainda que, graças ao senso artístico com que fui concebida, que em mim é um predicado de nascença, deu para notar o erro grosseiro em que o cronista incidira ao estranhar a minha natureza estética, achando que uma cadeira tem que ser forçosamente uma cadeira, nada mais do que uma base de apoio em que pessoas se aboletam ou, no máximo, leem uma revista ou tiram uma soneca domingueira. Ou seja, apenas uma cadeira em sua insignificante obviedade de objeto inexpressivo.

Cheguei mesmo a pensar no que seria de mim se eu não passasse desse artefato insignificante, na visão do cronista. Uma coisa indigna de respeito, cuja existência inanimada se resumiria a servir de receptáculo para os fundilhos magros ou pingues que sobre mim se acomodassem. Uma humilhação que me encheria de vergonha! 

E caí em transe imaginativo sentindo-me friamente usada pelo cronista que provavelmente esperava que eu o recebesse em meus braços e em meu seio com confortos maternais, logo eu que fui feita com esmero artístico para ser o que sou – uma peça art noveau criada em caprichoso trabalho artesanal - e não a reles cadeira que o idiota do cronista achava que eu devia ser.

Fui mais longe ainda.

No devaneio a que me entreguei fiz-me guerrilheira do imaginário: se o cronista tentasse se sentar sobre meu corpo exposto e vulnerável eu o repeliria com a repentina distensão dos meus arames férreos projetando-o pelo espaço como um homem-bala para que nunca mais me aparecesse pela frente com seu jeito incrédulo e debochado.  

Mas o tiro fulminante a que o submeteria seria apenas o desenlace de minha incontida ira. Antes de dispará-lo pelo ar me deliciaria em lhe impor um suplício no estilo Torquemada.          
Primeiro o trituraria em minhas tramas de ferro, espremendo-as e afrouxando-as a intervalos regulares contra o corpo do infausto torturado, para curtir com prazer seus espasmos dolorosos entre ais desesperados. E quando o tivesse bem triturado em minhas garras sádicas, transformado num ketchup de carne, sangue e ossos, aí sim é que o cuspiria como um homem-bala para bem longe de mim distante - muito mais bala mastigada do que carne humana.  

Ainda insatisfeita com o tiro disparado, que não seria bastante para encerrar a minha crônica vingativa, nela iria pôr como fecho uma frase de efeito literário: vade retro, cronista!

E se eu exagerei na dose de perversidade não importa. Graças a ela me sentiria de corpo leve como deve se sentir uma cadeira artística, numa exposição sofisticada em que se exibe para ser admirada não por um cronista inculto e bronco, mas pelos que compreendem o fino espírito da arte do mobiliário funcional-decorativo.  

 

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