Criado-mudo

Ao criado-mudo o que é do criado-mudo!

Esta frase me veio pela madrugada, curta e acabada. Porque a verdade é que eu tenho pelo meu criado-mudo uma consideração especial e um reconhecimento sem limites.

Sobram-me motivos para tanto. Serviçal e grave, ele está ao meu lado todas as noites, numa fidelidade que não é encontrável nem nos próprios cães, servindo-me com sóbria dedicação.

Sobre seus ombros coloco o abajur de que me valho para aclarar o escuro da noite, o relógio que tiro do pulso para dormir, o despertador de que me socorro para não perder a hora, os óculos que me dão vista e me dão vida, o copo com água para beber sem sair da cama.

Seu espírito de resignação é comovente, submisso aos meus caprichos, fiel companheiro de calmas madrugadas que não me deixa na mão. 

Dele nunca ouvi um resmungo sequer, uma má-criação que fosse. Sempre se mostrou um exemplo de serviçal, incapaz da vileza de querer me assassinar na escalada da noite enquanto ressono como sói acontecer nos romances policiais com os mordomos em relação aos seus amos. E olha que meus ressonos justificam um assassinato a golpes de estilete, o que lhe serviria de excelente atenuante.

Do meu criado-mudo, porém, não temo que me possa estiletar enquanto ronco. Nele deposito a absoluta certeza de que me é abnegado e fidedigno e de que jamais me levará às barras da Justiça do Trabalho para me cobrar salários, férias, indenização, horas extras, adicional noturno - todo esse samburá de reivindicações que rola pelos tribunais da pátria. Chego a pensar – tal a confiança que deponho nele – que sobre seu dorso rijo o meu anjo da guarda se acomoda para um justo e merecido repouso, enquanto eu durmo, imbuído, o meu anjo da guarda, da mesma confiança que dispenso ao meu fidelíssimo amigo, até porque anjo da guarda nenhum é de ferro.

Assim, não posso negar que meu criado-mudo é um gentleman. E pelo respeito que, em troca, eu lhe devoto, nunca ousaria chamá-lo de mesinha-de-cabeceira, o que seria uma injúria a sua britânica dignidade.

Mas não estou dizendo nenhuma novidade para os afortunados que têm um criado-mudo à sua disposição.  Com seus tamanhos e formas variadas – a opção por um modelo ou outro é questão de preferência pessoal – eles foram inventados para o doméstico serviço dos senhores e senhoras a quem servem num silêncio de pau, dada a sua condição inviolável de criados-mudos (refiro-me aos que são forjados na linhagem nobre das madeiras. Os outros, não merecem consideração).

Só que no caso do meu prezado amigo eu descobri que ele não é tão mudo quanto aparentava ser. Descobri porque não têm sido poucas as noites em que me acorda com estalidos secos para me sugerir temas para crônicas, transmitidos por um meio que suponho seja telepático.

A sequência da transmissão se dá em três atos: os estalidos inesperados; meu despertar do sono; as sugestões temáticas – no encadeamento lógico que meu criado-mudo usa para me falar. Ou estarei perdendo o tino?

Certo é que na maioria das vezes suas mensagens me chegam ainda imprecisas e sonolentas. Cabe-me captá-las e desvendá-las logo de manhã antes que me fujam da lembrança, para lhes dar corpo de crônica. É onde entra minha co-autoria, a parte trabalhosa do ofício.

Não foram poucas as crônicas que escrevi a partir de mensagens que o meu bom amigo me estalou, o que desde sempre lhe agradeço. Algumas sugestões vêm até acompanhadas de uma frase de abertura para o texto, num requinte de colaboração literária a que o meu criado mudo se arvora.

Dessas preciosas contribuições não abro mão. Pego-as pelo cangote e vejo, por excesso de zelo, se pedem ou não um retoque de acabamento (de uns tempos para cá não tem sido necessário, o que revela um evidente aprimoramento no estilo colaborativo do meu criado-mudo), e dou partida à crônica.

Sua última sugestão foi a desta madrugada, com um começo curto e acabado: “ao criado-mudo o que é do criado-mudo!” Com ponto de exclamação a reboque.

 

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