O cadáver enigmático

 (Le cadavre exquis boira le vin nouveau)

Nem sempre um enigma tem a sua decifração ao alcance da vã racionalidade humana. Foi o que aconteceu comigo em relação ao cadáver enigmático.

A primeira vez que dele ouvi falar foi com o nome de cadáver esquisito; o nome delicioso, com que também era chamado, eu o soube depois. Mas quando conheci o cadáver pessoalmente não me pareceu nem esquisito nem delicioso. Pareceu-me espirituoso o que, se não chegou a ser o desvendamento do enigma do cadáver, foi para mim um entretenimento delicioso, apesar de esquisito. 

Narro o episódio.

Na travessa estreita postava-se o cadáver espirituoso numa cadeira de rodas, obstruindo minha passagem. De onde viera? Quem o largara ali? Fora um abandono intencional ou um desastrado esquecimento? E como fazer para desviar-me dele sem o constrangimento de ter de mover a cadeira em que o cadáver estava aboletado para criar um espaço mínimo por onde eu pudesse me esgueirar e, rapidamente, sair da situação desagradável em que me encontrava?

Essas perguntas me bombardeavam o cérebro enquanto observava o cadáver como se ele quisesse me dizer, em sua mudez pétrea e mortuária, que para prosseguir na minha caminhada eu teria primeiro de passar por cima dele.  Compreendi que esta impressão, que ele me causava, é que o tornava espirituoso aos meus olhos.

Porque havia uma ironia recôndita em sua palidez cadavérica e na sua teimosa e silenciosa obstrução à minha passagem pela via estreita. Não nego que cheguei a pensar em lhe pedir licença para ir adiante, o que me fez sorrir do disparate da ideia.  

Dentre os muitos defeitos que possuo dois confesso humildemente: ser um mau fisionomista e esquecer facilmente os nomes das pessoas. Se não chegam a ser falhas de caráter que me deixem mal com os bons costumes, por elas tenho pagado micos vergonhosos, nas confusões em que me meto. Desenvolvi, por causa disso, um sexto sentido rodeado de cuidados que ponho em ação quando dou de cara com alguém.

No encontro com o cadáver espirituoso foi assim. Ao me aproximar dele, com o justo respeito com que devemos nos aproximar de um morto, eu senti que ele não me era totalmente estranho. “Já vi este cadáver em algum lugar”, pensei entrando no meu esquema de defesa pessoal. Aquelas feições empalidecidas, aquele rosto redondo, a testa larga, o nariz grosso sobre um bigode ruço, quase branco, o tórax avantajado, me lembravam alguém que tinha visto alhures. Mas alhures onde? E alhures, a quem?

Finalmente caiu-me na claraboia a lembrança procurada: o cadáver enigmático era uma réplica do defunto do quadro de Rembrandt, Lição de Anatomia do Dr. Tulp, com a diferença de que o morto à minha frente estava trajando dignamente um terno preto. Essa parecença, repentinamente descoberta, quase me levou a verificar se o braço do defunto, oculto pela manga do paletó, estava também dissecado, como no quadro famoso. Foi um impulso mórbido que, felizmente, morreu no nascedouro, até porque pude ler a tempo o aviso não toque no morto colocado numa pequena tabuleta que eu ainda não havia percebido.

Dando-me por avisado, recuei do meu propósito. Se já não é agradável tocar num defunto em condições normais muito menos seria tocar num morto abandonado numa via pública e ainda por cima sentado numa cadeira de rodas com um alerta proibitivo.

Mas no meu ir e vir em relação ao cadáver espirituoso, captei o aroma adocicado que dele se exalava. E novamente por esse detalhe o seu senso de espirituosidade se fazia sentir aos meus olhos (ou narinas): ao invés de tresandar à carne morta, o cadáver tinha um cheiro vivo de flor inebriante que envolvia quem dele se aproximasse. Um doce mistério? Um sutil magnetismo? Uma atração estonteante?

Sim e não, seriam as respostas adequadas às perguntas feitas porque pude ver que o cadáver espirituoso tinha um cravo preso na lapela do terno que vestia.  Eu ainda não o tinha visto porque a cadeira estava de lado, na travessa apertada. Mas ao vê-lo tive de rir outra vez, pois se tratava de um cravo de defunto, fonte do odor edulcorado que flutuava em torno do finado.

 “Este cadáver é um humorista”, admiti intimamente. “Somente um humorista seria capaz de fazer da morte uma piada e, de uma cadeira de rodas, uma barricada urbana. Merece os meus encômios”.

Assim pensando pensei também em lhe oferecer uma taça de vinho novo – novo porque aberto exclusivamente para brindá-lo. Mas temi que o gesto de cordialidade pudesse parecer excesso de surrealismo. Preferi deixar as coisas no pé em que estavam, dar meia volta, e mudar de rumo.

Foi o que fiz.

O que aconteceu depois com o cadáver espirituoso tornou-se para mim um enigma indecifrável.

 

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