Eu sou a bala que matou Hastaluego. Tenho, portanto, um depoimento a dar, mesmo que não me seja pedido, quando nada em atenção à importância que o morto desfrutava na literatura hispano-americana. A quem interessar possa é que dirijo minhas palavras.
Foi repentino o meu disparo. Eu estava pacificamente no meu canto de tambor, embora na vez de ser acionada, se a vez chegasse. Nunca pensei que pudesse ser naquele dia e naquela hora, num chalé de montanha, e contra o peito de Tito Hastaluego!
Só que não me fiz de rogada, pois é da minha natureza estar em ponto de bala. Tão logo fui requisitada, varei-lhe a roupa, cortei-lhe a pele gordurosa, penetrei-o carne adentro, alojei-me no seu ventrículo esquerdo sentindo o sangue cálido – com que sadismo o senti! - embeber meu corpo de chumbo firme e resoluto.
Numa curta trajetória de um milésimo de segundo, saí do ventrículo da arma, de onde fui disparada, até o do coração presunçoso do grande escritor hispânico.
Ele tombou com estrondo. Pairava em seus pulmões um resto de fumaça da tragada que dera no charuto que trazia entre os dedos. A fumaça foi exalada com seu último suspiro.
No interior do seu corpanzil agora inútil e abatido, onde me cravei com ímpeto raivoso, percebi o latejar do sangue esvaindo-se a cada pulsação a menos.
“Sangre como um riacho!,” me lembro de haver desejado. “E sangre sem pressa.”
Era uma frase de inspiração literária, digna de ser vertida para o idioma de Cervantes em honra do assassinado, mas me faltava o conhecimento para tanto.
Durou pouco, o riacho. Mal deu para molhar as tábuas do assoalho, onde Tito se estatelara.
No íntimo do meu ser de chumbo vibrava a satisfação indescritível de ter matado o grande Hastaluego. Seu rosto equino, sua barba hirsuta, os compridos cabelos grisalhos, os ombros espadaúdos já não pertenciam mais ao vivo que ele havia sido – eram molduras do morto em que eu o havia convertido.
Graças a mim, unicamente a mim, ao meu poder de fogo, a minha capacidade destrutiva, os elementos figurativos que davam aparência física a Hastaluego perdiam significado e grandeza no Hastaluego morto.
Que importância tinha agora a sua barba vasta se não a podia mais desfiar com os dedos de unhas sujas de nicotina, durante as palestras que pomposamente proferia nas academias do mundo?
E os cabelos, os seus compridos e alvoroçados cabelos? Tocados pela morte - que eu provocara com precisão balística - tinham perdido o ar de intelectualidade com que Tito posava de escritor socialista, crítico feroz das humanas injustiças, o que o credenciara como candidato ao Nobel de literatura. Paciência, um escritor a mais que falecia sem ser nobilitado.
A mim, causa mortis do morto, pouco importava saber por que fui chamada a cumprir minha missão mortífera, nem me afligia a categoria em que meu ato pudesse ser capitulado. Crime passional? Crime de inveja? Crime justiceiro?
Não me cabe indagar dos motivos nem das causas de que fui a consequência.
Se eu estou onde estou, no rubro jazigo do coração de Tito Hastaluego, é porque contra ele fui arremetida à queima-roupa. E queimando-lhe a roupa, a pele e a carne, cumpri a missão de morte para a qual fui concebida.
Quem quiser saber mais a meu respeito, qual o meu calibre e grau de periculosidade, a minha explosão de partida e velocidade de impacto, que abra a bisturi o coração do morto e me retire com pinça metálica da massa de fibra e sangue em que afundei, me submeta à lente de um microscópio pericial e me exponha ao mundo como o caroço de chumbo que realizou a façanha extraordinária de haver matado Hastaluego.
Digo isso sem sentimento de culpa e com muito orgulho, porque em se tratando do pretensioso escritor que Tito foi, e que por minha causa deixou de ser, eu me sinto realizada pela minha obra. Chego a pensar que meu ato letal seria tema para um belo texto de ficção se eu fosse capaz de escrevê-lo, de preferência em língua hispânica, para torná-lo mais dramático. Mas o escritor maior que poderia fazê-lo, eu acabei com ele.
Ainda em remissão ao conto Mistério na montanha, de Reinaldo Santos Neves.