Ivo

Setenta anos depois de conhecê-lo, a memória de Ivo me chega numa folha de papel.

É uma folha retangular de cerca de um palmo, amarelecida pelo tempo, datilografada com fita roxa em letra miúda e espaço duplo. Sua borda final termina com desfalque, faltando-lhe por isso pouco menos que uma linha. É um texto sem data e tem por título “IVO MOTTA DA SILVA, voluntário”.   

Segue-se o primeiro parágrafo da missiva: “IVO MOTTA DA SILVA, ex-praça voluntário do 32º Batalhão de Infantaria, para o qual entrou sob o nº 39 (1ª Cia.), no dia 24 de março de 1890, servindo sob as ordens do então comandante Andrade e Silva.”

O parágrafo seguinte mostra que a missiva resume a folha de serviço de um soldado raso: “Actou, primeiro como soldado e mais tarde como anspeçada, no Rio Grande do Sul, quando da Revolta, e em toda a Campanha de Canudos.”

A revolta mencionada foi a da Armada, com desdobramento no sul do país no governo de Floriano Peixoto. A campanha de Canudos foi a trágica e conhecida campanha das tropas republicanas contra os adeptos de Antonio Conselheiro, nos sertões da Bahia, entre 1896 e 1897.  O voluntário Ivo Motta da Silva participou de ambas.

Foi graças a sua atuação na guerra de Canudos que sua memória me apanhou de chofre, trazida pela folha datilografada que se encontrava entre as páginas, também amareladas, do exemplar de Os Sertões – 11ª edição de capa esverdeada e dura, ano 1929, da Livraria Francisco Alves, que havia pertencido a meu pai. 

Eu peguei o livro para uma leitura de fim de ano, e me caiu nas mãos, numa resenha de obituário, a memória de Ivo, como ele era chamado na casa de meu avô paterno.

Quando ali o conheci, ainda criança, ele já era um preto de carapinha branca, alto e magro, familiar da residência assobradada que deitava janelas para a rua da Santa Casa de Vitória, onde passavam bondes. Tratado com respeito por todos da família tinha acesso à casa a qualquer hora do dia ou da noite. Sua discrição o restringia, porém, às dependências da copa e cozinha.

Nunca lhe ouvi a voz ou, se a ouvi, dela não me lembro. Nunca lhe escutei as memórias, ou se as escutei, delas não me recordo, diferentemente de meu pai e de meus tios.

A eles sei que Ivo contava e recontava passagens das lutas em que se envolveu, principalmente em Canudos. Não foi por outra razão que meu pai, ao ler muito antes de mim o mesmo exemplar de Os Sertões que eu relia setenta anos depois de me ter reaparecido a memória de Ivo, deu-se ao trabalho de marcar, com lápis de cor vermelha, as vezes que na obra há menção ao 32º Batalhão de Infantaria. E marcou também os nomes de lugares que devem ter repontado nas épicas narrações que ouviu a Ivo: Calumbi, Angico, Monte Santo, Aracati, Juá, Gitirina, Geremoabo, Cocorobó, Jueté, Pitombas, Cansanção, em meio a tantos outros topônimos que não foram sublinhados e que formavam a cartografia agreste dos sertões baianos trilhados pelo Conselheiro. Assinalou ainda, com o mesmo traço firme na busca das pegadas de Ivo dentro de Os Sertões, os nomes de oficiais e comandantes que se ligaram à guerra de Canudos, que o praça 39 por certo conheceu pessoalmente: Araújo Pantoja; Campelo França; Colatino Góes; Andrade Guimarães; Savaget.

Volto à folha datilografada e serôdia que me trouxe Ivo à memória, para completar sua transcrição, respeitando-lhe os parágrafos:

“Teve baixa, juntamente com seus companheiros (em) 15 de novembro de 1898, no Rio Grande do Sul. Tirante a quantia de 100$000, nada mais recebeu durante as campanhas acima.

De etape (sic) e fardamento a que tinha direito durante 6 anos (conforme alega), nada lhe foi dado.

O título de dívida foi entregue no quartel general, no dia 18 de fevereiro de 1899 (há uma interrogação entre parêntese), na secretaria desse Ministério da Guerra. Caderneta de reservista nunca lhe foi conferida.

Está com 68 anos de idade, pobre, vencendo os últimos dias de vida com esforço próprio e grande dificuldade (esta última informação consta escrita a tinta na entrelinha, e parece a letra de meu pai, provável autor da missiva).

Deseja apenas que, equiparando-o aos veteranos da guerra do Paraguai (a frase se interrompe num trecho danificado do papel, para continuar adiante) ... uma pensão, que lhe garanta uma vida menos penosa.”

Nada mais está escrito sobre Ivo Motta da Silva, voluntário e anspeçada, descendente de escravos que lutou pelas forças legalistas no Brasil ríspido do século XIX. Ele próprio poderia ter sido um dos jagunços, a exemplo de Pajeú, Alecrim, João Abade, e outros mais que formaram as hostes aguerridas de um pregador místico e fanático. Mas o destino o colocou no lado oposto a esses destrambelhados lutadores, enlouquecidos de bravura inútil.   

Entre as páginas 544 e 545 do livro Os Sertões, que me levou a Ivo, há uma fotografia em preto e branco exibindo um troço de combatentes que se bateram contra os jagunços em Canudos. Quase todos posam tendo à mão as suas carabinas, sentados ou em pé.

Penso que Ivo poderia ser um deles, não me dando, porém, ao esforço de tentar reconhecê-lo porque, se ali estivesse, meu pai o teria assinalado num círculo encarnado e memorável.

Para quem como eu andei nas pegadas de Ivo nas páginas de Os Sertões, forçoso é reconhecer que o seu lugar foi nas entrelinhas de Canudos. E ao invés do seu rastro, por mim procurado na obra do grande Euclides da Cunha, achei o de meu pai.

 

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