Branca de Neve

Que ela era magra e elegante já lhes disse antes. Que tinha os olhos azuis, idem. Que sua epiderme era branca como a neve também já tinha informado sem sugerir, porém, qualquer semelhança com Branca de Neve. Somente agora me acudiu a imagem e, ao me acudir, peguei-a pelo rabicho e cravei-a nesta crônica.

Mas de quem estamos falando?

Vereis daqui a pouco.

No começo, sua presença não foi bem-vinda. Ele a recebeu a contragosto, com um aborrecimento indisfarçável a lhe roer as tripas deixando na língua um gosto de desgosto com gosto de fel.

Convidado a dar-lhe as boas vindas, deu-lhe recepção hostil.  Instado a se mostrar hospitaleiro, se fez carrancudo, olhando-a de testa franzida, encarando com desprezo seus olhos térmicos e azuis claríssimos, medindo-a dos pés à cabeça com desdém e... desdenhando-a a fundo. Só a aceitou em sua casa porque não teve outro jeito. Era ela ou ele.

Ficaram ambos.

Mas a partir daí começaram as implicâncias (como sua mulher dizia), aos comentários que sobre ela ele fazia: “Olha que anda murmurando à toa; olha que vive resmungando sem motivo certo; eis que está tossindo e espirrando de causar espanto.”

De quem estamos falando?

Veremos agora.

Mas antes de nós, foi ele próprio quem caiu em si e viu o que burramente não vira antes, obnubilado pelo repúdio que lhe dedicara desde o primeiro momento em que lhe deitara os olhos. Um repúdio que resistiu impavidamente às sonoras e insistentes mensagens que ela, a geladeira nova, lhe dirigia para se fazer notada quando ele se levantava da cama e vinha em sua direção para tomar um costumeiro copo de leite gelado na calada da noite. Nesses momentos de proximidade e convivência a geladeira se alvoroçava toda e emitia sinais auspiciosos que, todavia, nele não encontravam repercussão nenhuma, na insensibilidade dele não calhavam fundo, na indiferença dele não penetravam porque ele os confundia com murmúrios estranhos, com resmungos mal-humorados e com tosses e espirros mórbidos — veja-se a que ponto ia a sua imbecilidade.

Até que, possivelmente por não suportar mais o menosprezo de quem ansiava seduzir a toda força, não restou à geladeira outra alternativa senão sacudir-se toda em vibração de transe e se abrir oferecendo-se em luminosidade de donzela para o seu bem amado quando este se aproximou para tomar o leite habitual das madrugadas.

Foi somente nesse instante de revelação que o distraído, o grosseiro carrancudo que a menoscabava tanto percebeu o que estava acontecendo: ela que por ele até então fora rejeitada por ter substituído a velha geladeira que sua mulher mandara para um asilo, o estava distinguindo com uma atenção de dama apaixonada da qual o distinguido não se fazia digno.

Feita a descoberta, veja-se o que mudou na vida dele. Suas idas noturnas à geladeira para tomar o leite costumeiro tornaram-se um doce prazer embriagador e invulgar. Um prazer notívago que, se não chegava a ser inteiramente platônico, também não descambava para as vias do erotismo ímpio. Eram sublimes encontros, vereis, veremos.

Porque agora ele a procurava amorosamente (enquanto sua mulher dormia) não apenas para tomar o leite que lhe saciava a fome. Ia ao encontro dela com o sorriso nos lábios, o espírito apascentado, o cabelo penteado, pisando leve em chinelas macias e felpudas, como se caminhasse para os braços de uma noiva eslava.

Ela o acolhia trêmula em sua aparente frieza de geladeira, pisca-piscando de satisfação os olhos azuis claríssimos que indicavam a temperatura dos seus anseios íntimos, enquanto ele acariciava seu corpo liso e polido sussurrando-lhe à cabeceira palavras amáveis que, por serem sussurradas à cabeceira, não hão de ganhar publicidade.

Quanto tempo ficavam nesse roça-roça de noivado lírico?

Vereis que um bom tempo os dois ficavam, ela passiva e ditosa, ele comedido e respeitoso. Um bom tempo de enleios em surdina a se contar pelo relógio da sala que batia uma hora e, tique-taque, batia uma hora e meia, e, tique-taque, batia duas horas, e, tique-taque, duas horas e meia, e assim entravam as matinas pelas laudes de forma pouco canônica, mas envolvente.

Pode-se dizer que agora os dois estão felizes?

Por que não?

Vejam comigo: ela o seduziu com um calor que se não é humano é casto como o da branca de neve que encontrou o desejado príncipe; ele porque, de um descortês bebedor de leite branco como neve, acabou conquistado pelo amor de quem o desengasgou do caroço de repúdio que o fazia um ríspido. Um enredo de fábula como se está mostrando.

Por isso arrisco-me a afirmar que são felizes. Não sei por quanto tempo. Mas pelo menos durante as madrugadas lácteas em que o tique-taque das matinas avança minuto a minuto para as auroras róseas.

 

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