O fantasma e Dr. Voronoff

Eu acabava de subir pela escadaria Cleto Nunes – a única com canteiros centrais em Vitória – e tomava fôlego para emendar com a escadaria da igreja do São Gonçalo quando fui acometido pelo fantasma do centro histórico de Vitória.

- Você perdeu! - disse a voz roufenha barrando-me a subida.

- Isso é um assalto? - indaguei.

- Assalto?! - estranhou o fantasma que não entendeu que eu me referia ao conhecido jargão dos assaltantes de Vitória, que não são poucos, e que, quando rendem as suas vítimas, usam a gíria perdeu.  

- Deixa pra lá. Perdi o quê, fantasma? - inquiri tentando encurtar conversa.

- Perdeu a excelente palestra que o seu amigo, o historiador Fernando Achiamé, acaba de fazer na Academia de Letras sobre o romance Dr. Voronoff, de Mendes Fradique.

- Eu não sou da Academia, muito embora reconheça o valor de Achiamé como historiador, e da Academia como instituição cultural - procurei me justificar.

- A sessão foi franqueada ao público e muito concorrida, meu digno. Você podia ter ido...  

- Vou me desculpar com Fernando... - limitei-me a dizer.

- Sabe como ele começou a palestra?

- Não vai me dizer, fantasma, que você a vai repetir aqui nas fraldas do São Gonçalo... - e apontei para a igreja acima de nossos olhos.

O fantasma deu uma risada de maus bofes, porque mal cheirosa, e prosseguiu inflexível: - Não, você não vai adivinhar. Fernando começou a palestra colocando para tocar a marchinha Seu Voronoff, que Lamartine Babo e João Rossi compuseram em 1929, num chiste musical aos experimentos cirúrgicos do médico Voronoff que eu cansei de ouvir na voz de Francisco Alves. Quer que a cante para você?

- Não se atreva, fantasma!

- Nem um pedacinho? Eu posso até imitar a voz engraçada de Lamartine Babo...

- Nem imitando Francisco Alves - cravei um ponto final na sua ameaça.

- Outro, como você, que faltou à palestra foi o comendador Deodato. Eu havia me encontrado com o fantasma dele uma semana antes, e o convidei para irmos juntos à Academia. Não sei por que faltou. Logo ele que escapou do Dr. Voronoff, graças ao Dr. Voronoff - prosseguiu irrefreável o fantasma do centro histórico de Vitória.

Confesso que o arremate da frase beliscou-me o interesse.

- O que você quis dizer com o comendador ter escapado do Dr. Voronoff, graças ao próprio Voronoff?

- Desculpe-me, meu ínclito, se não fui claro. O que eu quis dizer é que Deodato se livrou de cair no bisturi do cirurgião Voronoff, graças ao romance Dr.Voronoff, de Mendes Fradique. E foi na hora certa que ele fez!

Depois dessa, não há como negar que o fantasma me enlaçara em sua parlenga, o que me levou a pedir mais explicações, deixando-o radiosamente empolgado.   

- Je vous raconte, mon ami. Não sei por que cargas d´água Deodato, ao tomar conhecimento de que o cirurgião russo Serge Voronoff estava realizando, com propalado autossucesso, o transplante de glândulas genitais de macacos para seres humanos visando ao prolongamento da vida dos transplantados e ao estímulo das suas atividades sexuais, meteu na cabeça que iria se submeter à cirurgia, naquela época denominada xenotransplante. Deodato ficou tão empolgado com a ideia que chegou a comparecer às Jornadas Médicas realizadas em 1928, no Rio de Janeiro, que reuniu médicos e celebridades científicas de várias partes do mundo, dentre as quais Serge Voronoff.

- Como ele conseguiu se fazer presente se não era médico? - cortei a fala do fantasma.

- Amigos são amigos, como eu e você, meu digno! Deodato era ami personnel do médico Fernando de Magalhães, que presidiu o encontro – disse o fantasma. – Mas deixa que eu prossiga. Durante as Jornadas Médicas, Deodato deixou acertado com o próprio Voronoff, a quem passou a chamar benemérito xenotransplantista, a realização da sua cirurgia para daí a dois meses, quando retornaria à capital federal. Foi após o seu regresso das Jornadas que ele me pôs a par, em literal segredo de confessionário, do propósito que tinha em mente. Ainda me lembro do seu pedido, proferido com entonação exultante: “Boca de siri, meu amigo! Nem a minha querida consorte, dona Esbelta, pode saber das minhas intenções. Será uma grande surpresa para ela.”

- E como entrou o Voronoff, de Mendes Fradique, nessa história? - indaguei para que o fantasma apressasse o galope da narrativa.

- Entrou pelas minhas mãos. Primeiro, eu procurei, com todos os argumentos ao meu alcance, dissuadir Deodato de sua decisão. Disse dos graves riscos que o seu xenotransplante podia acarretar, trazendo-lhe sequelas irreparáveis; falei do caráter experimental em que se encontrava o procedimento cirúrgico a que ele queria se submeter; ressaltei o elevado índice de insucessos apontados nos meios médicos e propagados pela própria imprensa da época, inclusive em tom galhofeiro e desmoralizador, apesar de serem sempre refutados por Voronoff, que chegou a manter à sua custa e disposição, uma casta especial de símios enjaulados como doadores para as suas cirurgias. Fui ao extremo de exagerar dizendo que por um infeliz lapso cirúrgico, que viesse a ocorrer, o xeno-enxertado poderia vir até a grunhir como chimpanzé, depois de suturado. Mas nada convenceu meu irredutível amigo. Numa cartada final, pedi que ele lesse o romance Dr. Voronoff, de Mendes Fradique, pseudônimo do capixaba Madeira de Freitas, então médico e escritor conceituado estabelecido no Rio de Janeiro. E acentuei, ao emprestar-lhe o livro, por mim já lido desde a sua publicação quatro anos antes: “Eu peço a Deus que a leitura lhe sirva de advertência, meu digno Deodato, pois não foram poucos os males que advieram a Eduardo Marinho, personagem principal do romance, depois que ele fez o implante glandular. Sobretudo, meu estimado Deodato, avalie com toda isenção possível não só o lado hilariante do romance, uma das características do estilo literário de Mendes Fradique, como também o jaez científico do seu enredo visto que, por trás do autor nominal do romance estava o médico Madeira de Freitas que sabia muito bem sobre o que escrevia”.

- Foi então...- comecei a dizer.

- Foi então o que salvou Deodato, mon cher ami: Dr.Voronoff x Dr. Voronoff. Ou seja, ficção x realidade, com vantagem para a primeira - concluiu o fantasma rindo com esgares indignos de serem vistos.

- Uma bela atitude da sua parte - elogiei a iniciativa.

- Pois saiba que até hoje Deodato me agradece. Não só a mim, como também ao Dr. Voronoff, de Madeira de Freitas. E agradece rindo, como se toda a história não tivesse se passado com ele, mas com outra pessoa. Agora, eu pergunto, meu digno: para dar uma pálida ideia do clima geral de ironia que envolveu, naquela época, os xenotransplantes de Serge Voronoff, não gostaria você de me ouvir cantar a marchinha de Lamartine Babo que ainda está ardendo na minha goela? Posso fazê-lo imitando Francisco Alves, o rei da voz, se você preferir.

Acedi a sua vontade: - Cante, fantasma! E cante imitando a voz debochada do grande Babo.

Apesar de cantar com sonoridade gutural fanhosa, o fantasma levou-me a reconhecer que o preâmbulo musical com que Fernando Achiamé abriu a sua palestra foi, sem dúvida, uma genial tacada. Quem discordar que o diga, depois de ouvir o fantasma:

Toda gente agora pode
Ser bem forte, ser um taco.
Ser bem ágil como um bode,
E ter alma de macaco.

A velhice na cidade
Canta em coro a nova estrofe.
Já se sente a mocidade
Que lhe trouxe o Voronoff.

Seu Voronoff
Seu Voronoff
Numa grande operação
Faz da tripa coração

 

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