O fantasma e os monumentos de Vitória

Ao escrever sobre os fantasmas na obra de Henry James, Tzvetan Todorov, em As estruturas narrativas, faz uma observação que me chamou a atenção: afirma ele que se um autor-narrador diz, em sua narrativa, que viu um fantasma, a hesitação não é mais permitida aos leitores. Torna-se ponto indiscutível a visão fantasmal e, por extensão, a existência do fantasma.

De certa forma é este o caso do fantasma do centro histórico de Vitória: uma figuração ectoplásmica que me acomete constantemente, tornando-me vítima preferida de suas indesejáveis abordagens, sem que eu possa sequer dizer que se trata de pura imaginação de autor-narrador e que seria nesta condição que o fantasma deveria ser aceito, de acordo com a tese de Tzvetan Todorov.

Mas, pelo contrário, quando eu conto o que conto sobre meus encontros com o fantasma é porque se trata de encontros com um avantesma verdadeiro, para mal dos meus pecados.

Nada de invencionice criativa de quem não tendo sobre o que escrever, escreve sobre um fantasma imaginativo que diz perambular pelo centro de Vitória. E tanto não é invencionice que dois amigos meus, também escritores, já tiveram o que eu suponho tenha sido o desprazer de comprovarem a existência do fantasma, em ocasiões diferentes, sendo que um dos amigos estava em minha companhia quando o fantasma nos encurralou sem qualquer constrangimento no Parque Moscoso. O outro encontro, ao qual não estive presente, deu-se numa livraria com o segundo amigo meu. 

Digo isso para que possa invocar o testemunho deles, caso se faça necessário confirmar, se alguém  exigir, que o fantasma do centro histórico de Vitória é personagem verdadeiro (por pouco escrevi personagem real), e não mera ficção.
Personagem que me pegou de surpresa, como quase sempre acontece, quando estava eu sentado num banco da praça Ubaldo Ramalhete, no centro de Vitória, contemplando o monumento ao Trabalhador – o dorso nu de um cavouqueiro assentado sobre sólida base de granito martelando uma ponteira no rompimento de uma rocha.

De repente, um bafo asqueroso, recendendo a cadaverina, arrepiou o meu cangote, soprado pelo fantasma, em sorrateira chegança de mau gosto e de mau-hálito. Quando falou, já estava se abancando junto a mim:

- Fruiu a sopradinha, mon ami? – perguntou zombeteiro. E sem que eu dissesse palavra, acrescentou: - Sempre admirei este monumento, da lavra do meu amigo Euclydes Fonseca. Faz tempo que não o vejo.

- O monumento ou autor? – perguntei ante a dubiedade da frase.

- A ambos – disse o fantasma.

- É uma escultura olímpica – comentei esteta. – Em minha opinião, devia chamar-se Monumento ao Trabalhador e não ao Trabalho. Seria mais adequado ao seu simbolismo.  

- Seria deveras mais justo... – concordou o fantasma. – Ademais, por questão de justiça histórica, não deveria nunca ter sido retirado do seu assentamento original. Lembra-se que ele ficava no fim da avenida Capichaba? Capichaba com ch, como se escrevia o nome da reta que vai da praça Costa Pereira em direção à curva do Saldanha. Hoje ela integra a avenida Jerônimo Monteiro. Embora eu ache que Jerônimo seja digno de dar nome à avenida, neste caso particular penso que deveriam ter conservado o nome capixaba, como nós afetivamente chamávamos aquela parte da avenida. Foi uma agressão à tradição urbana de Vitória, tão lamentável quanto a mudança deste monumento aqui para esta praça.

- Que não passava de um largo... – relembrei colaborativo.

- Bem falado, meu digno! Gosto de conversar com você porque você é um dos nossos.

- O que quer dizer com um dos nossos? – indaguei em legítima defesa.

Ele desdobrou-se numa risada tremeluzente em que seu espectro se multiplicou em vibráteis faixas furta-cores e tirou por menos: - É um modo de falar, celebrando a comunhão das recordações que unem nossas nostalgias solidárias. Uma delas é a do largo que havia aqui, em frente à antiga sede da Prefeitura, demolida pelo prefeito Crisógono Cruz. O largo era calçado com paralelepípedos, como toda a cidade de Vitória, o que não é novidade para você. Por falar em paralelepípedos, eles eram cortados pelos cavouqueiros que a estátua representa. Um trabalho manual e desumano, realizado de sol a sol em cima da rocha escaldante.  Muitos desses infelizes cavouqueiros trabalhavam na pedreira do Saldanha, em frente ao Penedo, lembra-se dela? As gerações de hoje não fazem ideia da quantidade de paralelepípedos extraídos das lajes que eram ali explodidas com bananas de dinamite. Os vestígios dos cortes das pedreiras ainda são marcas visíveis de uma época paleolítica de Vitória.

- Na hora das explosões interrompia-se, com apitos e bandeirinhas vermelhas, o trânsito de carros e bondes que por ali passavam para prevenir acidentes com as pedras que voavam pelos ares – botei tempero nas reminiscências do fantasma.

Ele recebeu meu contributo com indisfarçável alegria e ainda me pegou pelo pé: - Viu por que eu disse que você é um dos nossos? Não foi à toa que a estátua do cavouqueiro foi assentada no final da avenida Capixaba, pouco antes da pedreira do Saldanha. Não só por isso, mas também porque, antigamente, a única rua que levava ao forte de São João era chamada das Pedreiras. Mas quem sabe disso? Quem? Quem? Uns raros capixabas como eu e você, membros da confraria dos espécimes de memória privilegiada...

- A minha não recua tão longe... – tirei por menos. – Tanto que lembro vagamente da estátua do Trabalho, lá na Capixaba...

- Porque naquela época você ainda era um pirralho – disse o fantasma vindo em favor da minha memória menos longeva que a dele. - O monumento ficava no final da avenida, entre os trilhos dos bondes, até ser substituído pelo obelisco do quarto centenário da Colonização do Solo Espírito-santense, doado à cidade de Vitória pela família Oliveira Santos. O obelisco foi erguido inicialmente na Praça 8 de Setembro, com pedra fundamental lançada numa solenidade pública. O ano? Eu pergunto e eu respondo:1935! Da praça 8, o obelisco foi parar na Capixaba, substituindo a estátua do Trabalho, conquanto esteja hoje na Praia do Canto, onde ficava a praia do Trampolim, lembra-se dela? E eu gostaria muito de saber – continuou exsudando tagarelice e relembrando as peregrinações dos monumentos de Vitória - se nessas idas de um lugar para outro, levaram junto com o obelisco a urna com a ata do lançamento da sua pedra fundamental...

- Que urna? – perguntei acesamente.

- Vejo que você está interessado nas minhas recordações nostálgicas – disse o fantasma com um estremecimento de emoção que por pouco me contagiava. - A urna de bronze, meu digno, com a ata que registrou a efeméride para memória dos tempos vindouros, e que foi enterrada ao pé do obelisco. A ata foi assinada pelas autoridades presentes à solenidade, a começar pelo governador Punaro Bley, pelo qual eu nunca tive a menor simpatia, conforme você sabe. D. Luiz Scortegagna, bispo diocesano da capital, que discursou na ocasião dando vivas até a ele mesmo, o que era do seu estilo bonachão, também a subscreveu junto com outras pessoas da melhor qualidade da sociedade vitoriense. Nosso comum amigo, o comendador Deodato, foi uma delas, e o seu criado que aqui vos fala também teve a honra de firmá-la. Mas nesse vaivém do obelisco, jogado como peteca de um lado para o outro, a ata histórica deve ter se extraviado. Muito a propósito, eu estou pensando...

- Não me venha com campanhas cívicas para o meu lado... – tive a intuição do que ele ia me propor.

- Você adivinhou meu pensamento. Uma campanha para a recolocação do obelisco na Praça 8 e também do retorno do monumento ao Trabalho para a Capixaba.

- Ideia fora de cogitação – bradei incisivo.     

- Então, paciência. Motivavam minha sugestão nobres sentimentos de restauração histórica, fiando-me na sua capacidade de liderança cultural.

- Dispenso o crédito e a missão. 

E evitando que o fantasma viesse com mais chorumelas em favor de sua causa, levantei-me do banco onde o deixei absorto na contemplação estética do monumento ao Trabalho, como estivera eu antes que ele pousasse ao meu lado com seu terrível bafejo de cadaverina.

 

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