O fantasma e a cobra-coral

– Você sabe qual é o número da cobra, no jogo do Bicho? – perguntou-me o fantasma do centro histórico de Vitória, no centro histórico de Vitória. 

– É o nove... – respondi na pancada como conhecedor do assunto desde que li o livro Antologia do Jogo do Bicho, de Renato Pacheco, publicado pelas Organizações Simões, em 1957, enquanto me veio à lembrança o dia em que acompanhei Renato ao escritório da editora, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, para apresentar os originais da antologia numa tentativa de publicação que acabou dando certo.

– Pois jogue nesse número! Ou seja, jogue na cobra, mon ami! É o meu palpite do dia... – grunhiu o fantasma com um arremedo de risada que punha em dúvida o proveito da sugestão que me fazia.

– Mas de onde você tirou este palpite, meu caro fantasma, para me passar de mão-beijada neste encontro matinal?

– Da cobra que encontrei no final da rua Sete, hoje cedinho. Uma cobra-coral toda enroscadinha nela mesma, formando um novelo preto, vermelho e branco. E dormindo a sono solto, veja só, meu ínclito! Fazia anos que não via uma cobra, que dirá coral! Pensei que já tivessem acabado... Imagine o susto que tomei.   

– Quer dizer que de manhãzinha, no meio do seu caminho tinha uma cobra... – brinquei parodiando o verso de Drummond.

– Não exatamente no meio do caminho, mas junto de uma pedra, entre folhagens, ao lado do meio-fio da calçada.   E, pelo visto, até aquele momento ninguém a tinha enxergado, porque continuava viva e sã. Viva, sã e dorminhoca, só faltando roncar... – observou o fantasma com um raro tempero de humor. E prosseguiu: – O que gerou para mim um problema que chamaria de preocupação social porque, veja bem, meu digno, gerou no meu espírito a responsabilidade de evitar que a cobra pudesse picar alguém que, de repente, fosse atacado por ela. Avalie a magnitude do meu drama, mon ami: na rua ainda deserta, mal despontava o dia, deparo-me quase aos meus pés com uma cobra-coral que, como toda cobra, constituía uma ameaça potencial de morte para quem dela se aproximasse... O que fazer? Matar a bicha? Espantá-la para que voltasse para a mata, provavelmente no morro da Fonte Grande? Por certo, eram opções válidas, se eu não fosse o fantasma que eu sou. Porque por tudo que aprendi na minha vida, enquanto vivi longevamente, e mesmo agora depois de morto, nunca soube que serpentes tivessem medo de fantasmas... Não seria, pois, a minha simples presença perto da cobra que a afugentaria para os sombrios matagais de onde viera. E ainda que ela se assustasse com o fantasma que eu sou quem me garantiria que em sua retirada para os rincões de origem não viesse a picar alguma pessoa? Por outro lado, como um fantasma poderia recorrer ao auxílio de alguém que naquele momento passasse por ali, transferindo-lhe a responsabilidade de decidir o que fazer com a cobra? Era mais provável que a pessoa a quem eu recorresse ficasse mais apavorada com a visão do fantasma que eu sou do que com a da cobra mergulhada no seu sono de falsidade inofensiva. E por quanto tempo continuaria dormindo? Viu meu caro, o problemão que a cobra criou para este seu amigo? Oh, o quanto desejei que você, que é meu confrade de fé de tantos encontros citadinos, aparecesse naquela hora para assumir, no meu lugar, o destino a ser dado à víbora!

- Por que você não usou sua bengalinha para matar a cobra? – perguntei lembrando-me de que no último encontro que mantivemos o fantasma apareceu com uma bengala na mão.

 - Porque bengala de fantasma é atributo decorativo, meu digno. Só serve para adorno elegante, apesar da caveirinha incrustada no punho da que eu estava usando. Além do mais, nessa manhã, por ser muito cedo, eu não portava a bengalinha.

O relato patético feito pelo fantasma, com as explicações dadas e as variadas e inextricáveis nuances que se lhe apresentaram ao espírito numa situação de difícil solução, suscitaram-me a curiosidade de saber como se saiu da enrascada.

– Não vai me dizer que você deixou a cobra dormir seu sono madrugador sem nada fazer contra ela... – disse-lhe, temendo que tivesse sido realmente essa a sua atitude devido à natural falta de condições físicas para agir contra o ofídio adormecido.   

– Não, meu dileto amigo, jamais tomaria uma atitude de indiferença como essa. O que fiz foi lançar mão da única arma (que devo chamar de força) que tinhadisponível no meu fraco arsenal de combate à cobra. E, cá entre nós, devo a você ter me revelado mais de uma vez, quando vira o rosto quando eu falo, que sou detentor deste poder imanente, que é outro eufemismo com que a ele posso me referir.          

– Por todos os santos, meu amigo, seja claro!

– Se você ainda não adivinhou não vou criar nenhum mistério: eu simplesmente me abaixei perto da cobra e dei-lhe na cabeça uma baforada com a força do meu mau hálito. Primeiro, a cobra agitou-se num torpor lerdo e pesado.  Em seguida, abriu os olhos assombrados como se toda ela emergisse bruscamente de um sono de pedra que recuava às origens do mundo. Depois, num estrebuchamento de eletrocutado, espichou-se e retorceu-se de um lado para o outro, sacudiu-se várias vezes em estertores terríveis com a ponta da cauda arrebitada, e por fim baqueou diante dos meus olhos, os anéis coloridos do corpo cintilando fantasticamente, numa visão apavorante.    

– Quer dizer que você matou a cobra com bafo envenenado? – perguntei malévolo. 

– Pense o que quiser. Só que agora estou arrependido de ter matado a bichinha quando podia tê-la apenas espantado com um golpe mais dosado, a fim de que ela pudesse retornar ao seu matagal domiciliar. Mas até eu estava longe de supor que meu hálito fosse tão ... vigoroso.  

– Não se arrependa do que fez, meu amigo, porque com serpentes não se brinca, estejam ou não dormindo. As cobras-corais então são de dar medo até em fotografias. É matá-las, e mostrar o pau, como diz o jargão popular, por pouco ecológico que isso seja. No seu caso, você usou seu hálito mortífero e vigoroso (quase falei hálito ofídico, mas poupei-o da injúria), numa atitude que considero corretíssima. Lembre-se de que o que mais se fez ao longo do povoamento e desbravamento das brenhas desabitadas do Espírito Santo foi matar cobras de todas as espécies e colorações. Ou matavam-se as cobras ou por elas se era picado, num jogo de perde e ganha. Há miríades de documentos nos arquivos públicos atestando o que eu digo. Você foi um bom capixaba ao agir como agiu. E ao matar a cobra-coral com a potência do seu hálito, você não fez mais do que puni-la pelo mesmo processo de asfixia de que a coral se vale para matar quem por ela é fisgado.       

   – Um bom capixaba de hálito peçonhento foi o que você quis dizer... – comentou o fantasma descoroçoado e sem se aliviar do sentimento de culpa. 

“Foi de fato o que eu quis dizer” – pensei comigo mesmo, despedindo-me dele para ir fazer minha fezinha na cobra, na primeira banca do jogo do bicho que encontrasse. Por tudo o que tinha acontecido com o fantasma e pelo palpite que me deu, parti convicto de que seria a minha vez de matar a cobra na cabeça. Sem hálito envenenado, despiciendo dizer.   

 

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