O fantasma e o pico do Itabira

Parado, a pé, esperando que abrisse o sinal de trânsito (outros dirão semáforo) da avenida Princesa Isabel, nas proximidades do Tetro Glória, soltei em alta voz a expressão eta ferro,  referindo-me à canícula reinante do dia de verão que ensopava meu corpo de suor. 

Foi como se proferisse uma invocação infeliz que fez baixar ao meu lado o fantasma do centro histórico de Vitória.

-“Eta, ferro”, meu digno! Há quanto tempo não ouço a expressão, tão corriqueira nos nossos tempos de Vitória antiga.

“Pronto, estou ferrado!”, pensei comigo, enquanto o fantasma continuava:

- E como estamos falando de ferro, a expressão me remete aos tempos em que o ferro, trazido nos trens da Vale do Rio Doce, era descarregado em sonoras cachoeiras no porão dos navios atracados no cais do Pela Macaco, ali, do outro lado da baía, em Vila Velha – e o dedo sem unha do fantasma apontou na direção desejada. - Ferro exportado para ser transformado em aço! Hoje, o Pela Macaco está desativado, virou monumento histórico, nenhum cargueiro aporta em suas franjas e deve ter muita gente que não é do nosso tempo que nem sabe que a denominação popular se deve aos operários que pelaram os costados de sol a sol, trabalhando na rocha em que o cais foi construído. Sabe qual é a sorte sortuda que os capixabas temos? – avançou o fantasma em sua indesejável chorumelância sem me dar oportunidade, nem de sair do lugar em que estávamos, nem de pedir trégua para as urgências pessoais que eu tinha para resolver.

– A sorte, grand Dieu, é que o nosso Penedo (porque é muito mais de Vitória do que de Vila Velha), é um morro de granito e não de ferro. Senão já teria se acabado como acabou o pico do Itabira, na terra de Drumond. Se o poeta pudesse ver a cratera a que o Itabira ficou reduzido, a fotografia na parede que tanto o condoía iria condoê-lo muito mais. Gostou da minha remissão drumondiana?

- Mas em compensação, nós poderíamos oferecer ao poeta uma foto do pico do Itabira, em Cachoeiro de Itapemirim... – respondi com suado azedume. – O pico tem se mantido imortal até agora, e queira Deus que assim continue!

- Nuca se sabe, meu digno, nuca se sabe! Lembre-se de que nosso Penedo de todos os dias chegou a ser deploravelmente solapado em uma de suas partes traseiras, se não me engano para ampliar a área de carga e descarga de um de um dos portos vila-velhenses. Felizmente, a atrocidade foi contida antes que avançasse até a face voltada para Vitória. E já que estamos falando de ferro...

- Calma lá, meu caro! Quem está falando é você, me arrastando na conversa como um vagão da VALE. Se não fosse a desconsideração de deixá-lo sozinho, eu já teria atravessado a avenida para tratar dos meus problemas neste dia de calor insuportável.  

- Vejo que você está realmente pingando em gotas, pois até eu estou com as mãos suadas. Olha... – disse o fantasma querendo tocar meu braço, o que evitei num gesto brusco e defensivo. – Vamos ali para aquela sombrinha do edifício Fabio Ruschi que eu prometo terminar meu papo amigo. Só mais um minutinho de conversa. Porque o que quero lembrar, para não deixar o tema sobre ferro morrer pela metade (na lógica do fantasma, entenda-se), foram as campanhas do ferro-velho realizadas para recolher doações para fabricação de armamentos assim que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, lembra-se delas? Uma multidão de pessoas, movida do mais puro ardor cívico-patriota, saiu pelas ruas de Vitória – e em outras cidades do país – carregando bandeiras nacionais em que eram depositadas ferragens e latas velhas guardadas nas casas como lixo. Pilhas e pilhas de futuros canhões para combater os alemães foram reunidas num espólio de todo tipo que ficou amontoado na praça Oito de Setembro, guardado por escoteiros com seus uniformes típicos, lembra-se deles, os sempre alerta seguidores de Baden-Powell. – E o fantasma, com o indicador, o dedo médio e o anular unidos e suados, tocou a testa reproduzindo a continência escoteira. Você foi escoteiro, mon cher ami?   

- Nem de terra, nem do mar e nem do ar... Por isso não correspondi a sua continência – respondi com rispidez. 

- Não precisa ficar irritado, meu digno, pois já estou de partida, como prometi e vou cumprir. Mas gostaria de deixar combinada uma próxima conversa sobre os picos e morros do Espírito Santo, para um dia de menos calor do que este. O que você acha da ideia?

Àquela altura qualquer proposta que me livrasse do fantasma seria aceita de bom grado e a encampei calorosamente, sem, todavia, marcar dia e local para o novo encontro.

Ele ensaiou uma pequena decolagem, circunavegou no ar em torno de si mesmo, retornou ao ponto de partida e disse: - A propósito, você sabe que itabira quer dizer pedra que brilha?

- No caso do Itabira de Itabira era pedra que brilhava... - respondi sem confirmar se sabia ou não sabia do significado da expressão tupi. 

- Boa resposta, meu digno! – disse o fantasma retomando a decolagem e diluindo-se no ar numa tremura vaporosa que, como remate de partida, deixou-me cair num olho uma gota de suor dos seus dedos suarentos.     

- Eta ferro! – foi tudo o que me acudiu dizer atravessando a passos largos a lareira do asfalto da avenida.   

 

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