O esqueleto e a biblioteca

As pessoas percebem que têm esqueleto quando começam a envelhecer. Comigo, porém, foi diferente.

Meu esqueleto começou a estalar e a dar o ar de sua existência quando eu ainda era menino. Eram uns estalidos curtos, quase inaudíveis, exceto para mim que, cedo, acostumei-me a ouvi-los.  Na minha santa ignorância eu supunha que fossem meus ossos que estivessem crescendo junto com meu corpo. E assim, ingênuo de mim mesmo, com os ossos cresci e fiz-me adulto.

Com o avançar da idade os estalidos foram aumentando de intensidade, ainda que em manifestações ocasionais, ao longo da geografia do meu corpo. Ora eram no calcanhar, ora nas ligaduras dos joelhos; ora nos cotovelos, ora no entroncamento do pescoço; ora aqui e acolá, nos meus movimentos bruscos e desusados, em repetidos tleque-tloques.

O homem se habitua a tudo, inclusive aos estalos dos seus ossos.

Habituei-me assim a aceitá-los como naturais, reclamos de uma estrutura óssea que envelhecia senão a olhos vistos pelos menos de forma que para mim era cada vez mais constatável. É verdade que, com o decorrer da idade, os estalidos foram se transformando em estalos que se tornavam mais amiudados e vibrantes a ponto de serem ouvidos pelas pessoas ao meu lado.   

“São os meus ossos que estalam”, explicava eu meio sem graça, diante da estranheza dos ouvintes.

“Alto desse jeito?”

“Isso me acontece desde menino”.

Dos estalos amplificados passaram meus ossos a avisos amistosos, geralmente quando eu caminhava pelas ruas. Eram mensagens sopradas aos meus ouvidos, numa linguagem que somente eu era capaz de captar: “Cuidado com o buraco!” “Não vai escorregar na escadaria!” “Espera abrir o sinal para atravessar a avenida!” (meus ossos são do tempo em que semáforo se chamava sinal).

Também em casa, e não apenas na rua, recebia lembretes extremosos: “Levanta da cama devagar!” “Evita pisar no tapete!” “Não vai escorregar no banheiro!” “Não pise no piso molhado!”

E assim por adiante iam eles, meus caros ossos, me advertindo cheios de cuidado com a minha pessoa, com as minhas costelas, tíbias, fêmures, úmeros, cóccix, o que era uma forma de terem zelo para com eles próprios e, no retinir dos ossos, para com a minha ossada por inteiro.

Eu, por mim, na minha doce ingenuidade, da qual nunca consegui me libertar como podem ver os que me leem, achava que quem falava aos meus ouvidos era o meu santo anjo da guarda, o zeloso guardião dos meus dias e das minhas noites, e não meus velhos ossos estalantes, agora curiosamente palradores. Fui levando a vida, ou pelos ossos sendo levado ao longo dela.

O grande conflito deu-se de modo inesperado e surrealista. 

Tinha eu ido assistir a uma palestra na Biblioteca Estadual sobre o empolgante tema “A biblioteca e a representação do Universo”. O assunto, sem dúvida instigante, como hão notado pelo título, foi pelo palestrante inteligentemente reduzido ao universo da literatura, área de sua especialidade, sendo desenvolvido com exímio brilhantismo para um auditório atento e participativo.

A tese que servia de base à exposição era a de que todos os homens, pelo menos os letrados, mas especialmente os escritores, são os livros que leram. Borges, Cervantes, Machado de Assis, Ítalo Calvino, Humberto Ecco, Kafka, José Saramago, Guimarães Rosa, Manoel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade foram citados pelo orador para estabelecer o elo de intertextualidade da obra desses grandes, ou mais precisamente do que eles se tornaram como autores, com os livros que leram nas bibliotecas das suas vidas. Em outras palavras: focou o palestrante a relação do escritor com a caixa de Pandora de sua caverna biobibliográfica.

Terminada a exposição, na rodada final das perguntas do auditório, que antecederia uma distribuição de livros empilhados sobre uma mesinha, é que se deu o meu vexame.

Sem que eu pudesse dominar o gesto inesperado, meu esqueleto ergueu o braço, que não era outro senão o meu braço direito, para pedir a palavra e, pela sua boca de caveira, que não era outra senão a minha boca já com a palavra concedida, estarreceu o orador e o auditório com a pergunta: “O senhor, que com tanta competência está versando o tema deste encontro, poderia me explicar qual a importância que os livros têm para um esqueleto?”

Num esforço desesperado agarrei com a mão esquerda o braço que se erguera sem a minha permissão, como na célebre cena do filme do Dr. Strangelove, e puxando-o para baixo acenei com a cabeça para que o desnorteado orador desconsiderasse a pergunta que lhe tinha sido feita.

Foi inútil, porém, minha bisonha iniciativa para me safar do mal-estar a mim causado (como também a todo o auditório), pela incrível e inoportuna pergunta de um esqueleto irreverente. Até porque novamente de braço alevantado – braço que se livrou num repelão do meu controle – ele voltou a pedir o que pedira antes: “Sim, eu gostaria que o senhor me explicasse a importância que têm os livros para um esqueleto.”

“São os ossos do ofício” comentou o orador como se recorrendo a uma tirada alegre pudesse escapar, em seu triste desamparo, da situação absurda em que se vira posto. 

Provocativa pilhéria.

Ao ouvi-la, meu esqueleto se pôs de pé, puxando-me com ele, para afirmar categoricamente que dali não sairia sem uma resposta satisfatória à pergunta que fizera, o que deflagrou no auditório uma reação geral de descontentamento e irritação.

“Senta, palhaço!”, ouvi às minhas costas.

“Cala a boca, assombração!”

“Fora, chato!” gritaram vozes pluralizadas. 

Próximo de mim, alguém me puxou pelo braço me obrigando a sentar, como se fosse eu o culpado pelo que estava acontecendo.

Sentido o puxão violento, meu esqueleto se fez irado e pela minha boca, sem me dar azo a qualquer bloqueio, disse: “Me larga! Eu quero resposta para a pergunta que fiz, e que seja uma resposta filosófica!”

Era exigir demais da paciência dos presentes e a prova disso foi o primeiro livro que arremessaram às minhas costas, retirado dos que formavam a pilha da mesinha. E ao primeiro se seguiram outros e mais outros. Livros à mancheia, fazendo-me lembrar do verso do Baiano: “o livro esse audaz guerreiro que conquista o mundo inteiro” (afinal, não somos nós os livros que lemos?).        

Sob uma saraivada deles, um dos quais tive a sorte de pegar em pleno voo antes que me atingisse o nariz, eu e o meu torpedeado esqueleto fomos definitivamente expulsos da biblioteca, debaixo de estrondosa vaia, além do tiroteio bibliográfico.  

“Que livro é este que você pegou no ar?” perguntou-me ainda arfante o esqueleto, quando nos vimos fora do bombardeio inimigo.

“Bravos Companheiros e Fantasmas!” respondi mecanicamente.

Ao ouvir o título, meu esqueleto apregoou esbaforido “é o nosso caso, é o nosso caso!”, sacudindo-se em seguida numa gargalhada homérica, a dentadura à mostra. A minha/sua dentadura.

“O que eu vou fazer agora?” perguntei desconsolado com a lastimável experiência por que tinha passado.

A proposta que o esqueleto me fez, apesar de ser catártica por ter partido de uma vítima da palestra, não podia ser diferente: “Que tal botarmos fogo na biblioteca?”  

“Cala-te, Nero!” foi a resposta que lhe dei.

 

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