Entre parênteses

Éramos dois, na sala de espera, quando ela chegou. E mal se sentou, começou a falar. Assim de estalo, sem apresentações, sem mais aquela. Abriu o verbo pelo prazer de abrir o verbo. Uma língua solta.

— Caiu outro avião, vocês ouviram a notícia? Agora foi na África. Vinha de Paris, e não se salvou ninguém. Aliás, salvou-se uma menina, que um pescador achou no mar. A coisa está feia. Agora é que eu não ando mais de avião. Não é de apavorar?

Calado estava, calado fiquei por falta de propensão a alimentar conversa.  Melhor ainda: defensivamente peguei num exemplar da revista Exame, de cinco meses atrás, daquelas bem amarfanhadas, típicas de consultório médico, e dei-me ao fingimento de que a lia com muitíssimo interesse e concentração inabalável. Meu companheiro de espera é que se sentiu na solidária obrigação de responder à pergunta que havia sido feita.

— Foi um desastre feio...

Não mais do que quatro palavras, ele disse. Mas o bastante para que ela voltasse à carga:

— Avião é assim mesmo. Você entra dentro dele e seja o que Deus quiser. Eu fico pensando é nos minutos finais antes da queda, as pessoas em desespero sabendo que estão mergulhando para a morte. Deve ser terrível, Deus que me livre! Ontem eu li num jornal a notícia de que o senador (ela deu o nome do senador) passou um sufoco. Ele ia de Vitória para Brasília e o avião teve de fazer escala imprevista em Belo Horizonte e depois no Rio. Problemas mecânicos.  Problemas mecânicos em pleno voo, duas vezes repetidas, e, por cúmulo da situação, sem mecânico para atender e consertar... É de esfriar o coração. Vocês viram a notícia?

Fingindo que lia Exame, fingi que o vocês que ela havia sublinhado nada tinha a ver comigo. Sentado entre ela e o meu vizinho de lado comportei-me como se estivesse entre parênteses, na conversa dos dois.

— Avião não cai com político — disse o vizinho, alfinetando com ironia: — Vaso ruim não se quebra...

Novamente ela pegou a deixa no ar.

— E como essa gente viaja com passagens pagas com o nosso dinheiro! No Senado tem sido uma farra. Todo mundo tem direito a passagem aérea ou acaba tendo. Mulher de político, filho de político, sogra, mãe, avó, amante... Uma tristeza. Eu sempre disse a meu marido que ele devia ter sido político. Não que eu fosse viver voando em avião, mas ia aproveitar outras mordomias, que elas parecem não ter fim. A filha do Sarney até mordomo pago pelo Senado ela tem. Parente em emprego público então nem se fala. É uma penca. O Sarney também parece um saco sem fundo de pilantragens. É uma em cima da outra, ou uma para cada fio do bigodão. Eu fico besta. E tem gente que nem se abala com o que se passa no país. O senhor que está lendo aí, o que que o senhor acha?

Não havia dúvida de que era contra mim que ela voltava as baterias, era contra mim, em minha disfarçada leitura de Exame, que ela lançava as malhas de sua tarrafa verborrágica, certamente porque não achasse justo que apenas o meu companheiro de sala de espera lhe desse a merecida atenção enquanto que eu, em minha falsa segurança de parêntese fechado à direita e à esquerda não ligasse a mínima para o que ela dizia. 

Indubitavelmente provocado dignei-me conceder-lhe um olhar de misericórdia — seco, frio, mortiço, retornando logo à minha mal-disfarçada leitura.

— Eu gostaria realmente de saber a sua opinião, embora o senhor pareça ser uma pessoa que não goste muito de falar — insistiu na tarrafada.

Indubitavelmente provocado pela segunda vez não resisti e entrei de sola:

— Não gosto mesmo. E para ser franco, não tenho opinião formada sobre coisa alguma. Nem sobre Sarney.

— Então o senhor é um alienado?

— Alienado de pai e mãe.

— Tenho muita pena do senhor. Porque eu sou uma pessoa que tem opinião sobre tudo, e não me privo de transmiti-la a quem quer que seja. O que eu penso eu digo. Sou extrovertida, aberta, adoro falar. A fala distingue os seres racionais dos irracionais. A humanidade seria outra se as pessoas, se todas as pessoas dissessem o que pensam, se não escondessem seus pensamentos e nem se escondessem em seus pensamentos. Entendem o que eu quero dizer? Por isso eu gosto de conversar, de me abrir. Que coisa mais triste é ver uma pessoa caladona, cismada, fechada em si mesma como uma ostra. Meu marido diz que eu falo pelos cotovelos. Que eu falo até dormindo...

— “Sonóloga”... – disse eu chutando o neologismo e indo à forra.

— O que que o senhor falou?

— Eu disse que a senhora é sonóloga. Não existem pessoas sonâmbulas, que andam dormindo? Pois a senhora é sonóloga: fala enquanto dorme, segundo o seu marido.

— Eu nunca tinha ouvido esta palavra antes... — ela disse.

— Se a senhora prefere outra pode usar também sonóloqua, que significa a mesma coisa. Ou sonofônica... Ou talvez ainda...

Ela me encarou de um modo estranho e, verdade seja dita, teve a coragem de declarar:

— Acho melhor o senhor voltar a ler sua revista.

O que foi muito bom, porque fechei o meu parêntese.

 

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