Vida, paixão e morte de Lacy Ribeiro (1948-2013)

Francisco Aurelio Ribeiro (AEL-IHGES)

 

A nossa literatura está se transformando. Se atualizando. E isto graças a Lacy Ribeiro,
que passa - os olhos lúcidos - na alvorada para ir trabalhar, recolhendo as sobras dos sonhos. Junto, certamente, vêm alguns pesadelos.

Luiz Fernando Tatagiba

Lacy Fernandes Ribeiro, poeta, contista, romancista, nasceu em Barra de São Francisco, ES, em 1948, tendo vindo para Vitória ainda jovem, para estudar e trabalhar, como foi o destino de tantos capixabas de sua geração. Era o dia 31 de março de 1964, data em que se iniciava a ditadura militar, que marcaria os vinte “anos de chumbo” nos quais viveríamos a repressão, o medo, a falta de liberdade e que se refletiria na literatura de toda uma geração, de uma forma mais ou menos realista. Para ela, escritora de viver até a última consequência o que escrevia, a literatura se apresentava como uma forma de denúncia das misérias sociais, com um olhar misto de ternura e de encantamento pelos miseráveis dos guetos e das sarjetas escuras de Vitória, personagens de sua prosa mínima com quem convivia na ida para o trabalho ou para a faculdade de Direito. Vitória, capital do Espírito Santo, tinha deixado de ser a cidade provinciana, bucólica, idílica do passado, para se transformar numa cidade congestionada, violenta, segregadora, com a vinda de milhares de pessoas iludidas pela possibilidade de trabalho nos grandes projetos industriais implantados em seu entorno pelos ditadores militares e pelo êxodo rural provocado no campo pelo desmatamento e pela erradicação dos cafezais. Para muitos, Vitória foi a capital da esperança que, logo, se tornaria uma Derrota. A literatura de Lacy Ribeiro retratou essa mudança e esses personagens. Em nenhum livro de história geral ou do Espírito Santo se pode ler com tanto realismo essa transformação social e o “zeitgeist” dessa geração como na prosa de ficção de Lacy Ribeiro e Fernando Tatagiba ou nos poemas de Waldo Motta.

Lacy Ribeiro é de uma geração pós-Segunda Guerra, da qual participaram, também, Amylton de Almeida (1946-1995) e Luiz Fernando Tatagiba (1946-1998), seus amigos e que escreveram o prefácio e a orelha de um de seus primeiros livros, Avenida República, publicado em 1987. Os três pertenceram a uma geração que beberam na literatura existencialista de Sartre, Camus e Simone de Beauvoir, sorveram o que de melhor havia na geração “beat” norte-americana de Kerouac, Salinger e Ginsberg, curtiram a “nouvelle vague” francesa de Margueritte Duras e o cinema psicológico-existencial do norte-americano Douglas Sirk, do alemão Fasbinder e do sueco Bergman. Era uma geração que lia, amava, odiava e vivia intensamente cada dia como se não houvesse amanhã. De alguma maneira, souberam que a vida lhes seria curta e breve.

A obra de Lacy Ribeiro se opunha a tudo o que se fazia, até então, na literatura dos capixabas. Pelo menos com relação à linguagem, aos temas e aos personagens. É o que dizia Luiz Fernando Tatagiba, na orelha do livro Avenida República: “Deixemos a burguesia, os beletristas, com sua literatura de salão. De casa colonial, de varanda aveludada. Mergulhemos de vez na esquina. Aí estão as escadarias, os bares, becos, a baía de Vitória. O boteco, a praça, a avenida. O submundo do prostíbulo e da ponte. Aí estão os ônibus superlotados, a carona inesperada da madrugada. A aventura de viver. Aí está Lacy fazendo uma literatura-vida, viva, dura e madura. Com o ruído das ruas.”

Acompanhei, desde o início, a carreira literária de Lacy Ribeiro, capixaba nascida no interior, como a maioria de nós, e que foi assassinada, brutalmente, em sua residência, em janeiro de 2013. Seu primeiro livro publicado, Primeiro passo, poemas, foi lançado no mesmo ano em que entrei na UFES, em 1982. Desde aquela época, já pretendia estudar a literatura contemporânea feita no Espírito Santo, objeto de minha tese de doutoramento defendida oito anos depois. O livro de poemas de Lacy Ribeiro não me chamou à atenção, pois era mais um livro de poesias subjetivas de uma escritora que se propunha dar o “primeiro passo” na literatura. No entanto, minha percepção mudou, quando ela publicou Contos de réis, em 1986 e Avenida República, 1987, pela Ed. Cátedra, do Rio, contos-crônicas, uma prosa minimalista, elaborada em linguagem literário-poética quase jornalística. Naquele momento, vi que Lacy Ribeiro era uma escritora madura com enorme potencial literário, que se enquadrava na chamada “literatura marginal”, neorrealista ou neonaturalista daqueles anos, fugindo das características do “realismo fantástico”, ou “mágico”, predominante na década anterior. No Brasil, a chamada “geração marginal” ou “neonaturalista” gerou escritores como João Antônio, Ivan Ângelo, Sérgio Sant’Anna, Oswaldo França Jr., Carlinhos Oliveira e muitos outros prosadores e poetas. No Espírito Santo, Lacy Ribeiro veio se juntar a Luiz Fernando Tatagiba, o maior representante dessa geração, Amylton de Almeida, Antônio Alaerte, Milson Henriques, Toninho Neves e Waldo Motta, escritores que faziam uma literatura de realismo social, que retratava personagens considerados como marginais ou desajustados de todo tipo, alijados pela engrenagem capitalista que a todos moía e consumia. Em sua literatura, Lacy Ribeiro os colocava como protagonistas da cena literária, com uma linguagem realista, sintética, minimalista, nos dois primeiros livros de contos, Avenida República e Contos de réis ou verborrágica e barroquizante em Contos bastardos.

O que caracterizava as narrativas curtas de Lacy Ribeiro era a linguagem hiper-realista, fragmentária, mínima, mais próxima da linguagem jornalística, ou mesmo da publicitária, que se consolidava naqueles anos recém-saídos da ditadura militar e perdidos numa encruzilhada econômica sufocada pela hiperinflação sarneysista e desesperançada, mas, ao mesmo tempo, extremamente libertária, após ter saído de uma ditadura de duas décadas, como se pode ler em “A legião gay”: “Travestidas ou não, as bichas são as mais felizes das madrugadas. Riem das caras das pessoas e do desprezo que vem depois das surpresas. Vorazes, absorvem os últimos instantes da noite, estufando os pulmões. Entre sorrisos e beijos, despedem-se umas das outras e evaporam-se como se evaporam os anjos” (In: Avenida República, 1987, p. 73). Passava-se por um momento de luta libertária e as causas feminista, gay, ecológica, pacifista bem como o movimento de afirmação da negritude, indígena e de outras “minorias” estavam em evidência.

Naquele momento, vivia-se o espectro do surgimento da AIDS, inicialmente considerada uma “peste gay”, e 1985, data inicial de sua produção literária em prosa, tornou-se emblemático pela morte de Rock Hudson, primeiro grande astro de Hollywood vitimado por essa doença. Na década seguinte, a de 1990, haveria um retrocesso no espírito “libertário” da década anterior, devido à grande mortalidade provocada pela AIDS, ainda sem os medicamentos que reverteriam, anos depois, essa situação; à assunção ao poder do governo Collor e ao desmantelamento da esperança que não vencera, totalmente, o “medo”. Daí para frente, Lacy Ribeiro silenciou-se e nada mais publicou por mais de duas décadas, fenômeno também ocorrido com outros escritores da mesma geração como seu amigo Sérgio Blank, e mesmo, Waldo Motta. A morte de Amylton de Almeida, em 1995 e a de Fernando Tatagiba, em 1998, seus principais interlocutores, também são marcos a considerar-se aos que quiserem investigar as razões desse hiato improdutivo numa carreira literária tão rápida e promissora como fora a de Lacy Ribeiro.

No mesmo ano em que Lacy Ribeiro lançava Contos de réis, histórias curtas que enfocavam os marginais de toda sorte da sociedade brasileira recém-saída da ditadura militar (1964-1985) e caída na realidade da bancarrota econômica, Fernando Tatagiba lançava um manifesto chamado “Por uma Literatura-Povo, por uma Literatura-Rua”, em que dizia: “A Literatura Capixaba, excetuando-se a poesia, sempre foi feita pela burguesia - beletrista por excelência. Sendo assim, essa burguesia-fascista ou ‘liberal’, mas definitivamente alienada, estava obviamente afastada do povo, das ruas, do cheiro muitas vezes doloroso do ser humano comum da esquina. [...] É necessário que a Literatura Capixaba [...] mergulhe de vez na rua, na passarela comum, se encharque de povo, de pessoas simples, gente da esquina e da praça.” (In: Rua, 1986). Os contos de Lacy Ribeiro seguem à risca o manifesto de Fernando Tatagiba, em “Rua”: ser uma literatura que retrate o povo, a rua e a sua fauna humana. Numa linguagem sintética, contida, irônica, excessivamente realista, crua, às vezes, sem ser fácil ou malcuidada, Lacy focaliza o submundo de Vitória, as suas madrugadas e personagens: mendigos, pivetes, prostitutas e travestis. Seus temas recorrentes são: a miséria, a solidão, a violência, o desamor nos grandes centros urbanos.

Mesmo fazendo uma prosa naturalista, contos como “Banquete” (Em Contos de réis) e “A cega” ou “Novenas de esperança” (Em Avenida República) revelam um lirismo quase romântico, que denunciam a miséria social através do sentimento do “eu”. Vejamos: “A moça cega surgia da esquina da farmácia São Lucas, tateando o espaço, ajudada pela bengala. Não se viam seus olhos detrás das lentes escuras, mas ela nos percebia e nos desejava bom-dia, sorrindo. Era comum sermos cutucados pela sua bengala, nas costelas, nas nádegas e nas pernas. Quando ela acertava alguém, pedia desculpas e sorria. O garoto que vendia jornais é que não gostava muito dela, pois, agachado ao lado da pilha de jornais, de vez em quando levava umas bengaladas na cabeça. Quando ele notava que ela se aproximava com o seu toc-toc, levantava-se e colocava-se na defensiva. Se, por acaso, esquecia-se ou distraía-se por qualquer coisa, era acertado em cheio na cabeça. Passava a mão na dor e nos olhava sem graça, mas, o pequeno jornaleiro, como os outros, ajudava-a, nas madrugadas chuvosas, amparando-a na calçada escorregadia”. (“A Cega”. In: Avenida República, 1987, p. 31). Chama à atenção, no texto, o eu narrador plural, observador e participante da cena narrada. Ele está junto de seus personagens, vivendo com elas, a cega, o pequeno jornaleiro, os outros, a solidão das noites de quem espera o ônibus lotado, numa solidariedade compartilhada e não sem conflitos. 

Lacy Ribeiro seguia uma cartilha ideológica e literária. Militante da esquerda, filiada ao Partido Comunista do Brasil, foi advogada, secretária de multinacionais, aproveitando “tudo que extrai de suas experiências ombro a ombro com o povo humilde, o que trabalha, o que fica desempregado, o deslembrado dos que dominam”, conforme consta da sua biografia, onde também se lê: “Lacy Ribeiro, escritora maldita, bendita, iluminada, querida por todos e mal entendida por alguns, faz uma literatura diversificada: poesia, contos, crônicas, romances, ensaios, etc” (In: Contos bastardos, 1991).Desde suas primeiras obras, foi saudada como nome promissor, ao lado de escritores capixabas já consagrados, como se pode observar no prefácio de Contos de réis, feito por Moacir C. Lopes: “Lacy Ribeiro veio para incorporar-se aos grandes ficcionistas brasileiros, e chegada de uma terra, Espírito Santo, onde têm surgido escritores de primeira grandeza, dentre os quais posso destacar os de quem melhor conheço a obra e sou fiel admirador, como José Augusto Carvalho, Reinaldo Santos Neves. Chega em invejável companhia”.

A prosa realista-documental de Lacy Ribeiro retratava o povo da rua, a fauna humana que habita as madrugadas, os bares, os pontos de ônibus. Com uma linguagem sintética, contida, irônica, hiper-realista, às vezes, por sua crueza, sem ser fácil ou mal cuidada, Lacy focalizava o submundo das ruas de Vitória, seus personagens marginalizados: mendigos, pivetes, prostitutas, travestis, drogados, desempregados. Seus temas recorrentes eram a miséria, a solidão, a violência, o desamor, a vida urbana. Mesmo fazendo uma prosa quase naturalista, Lacy Ribeiro nunca deixou de ser lírica, idealista, romântica, às vezes, como se pode ver nos contos quase jornalísticos de Contos de réis, na prosa fragmentária e mínima de Avenida República ou nos contos catárticos e verborrágicos de Contos bastardos.

O auge de sua carreira literária ocorreu ao ganhar dois concursos literários do DEC, hoje SECULT, na categoria romance, em 1989, com Rocks e baladas de Marcos Furtado, obra que tematiza as dificuldades do protagonista para assumir sua homossexualidade na sociedade provinciana de Vitória dos anos 60 e 70 e, em 1990, na categoria Contos, com Contos bastardos, sua melhor obra literária. Nos sete contos, há uma narrativa catártica, enfocando personagens marginais, psicóticos, num cenário final de século, pós-moderno. Lacy Ribeiro ganhou mais um prêmio, em 1993, na categoria infantojuvenil, com seu conto Grades suspensas e desapareceu do cenário literário. Fez concurso para a Polícia Civil e passou a trabalhar diretamente com os marginais que sempre a seduziram. Apaixonou-se por um deles, presidiário e contou essa história no romance autobiográfico Paixão de cárcere, romance proibido, sua última obra, publicada em 2009. Mais uma vez seu nome sumiu das páginas culturais e literárias da cidade, só aparecendo, em janeiro de 2013, nas páginas policiais, assassinada com sete facadas por um de seus personagens.

 

Leia outros textos

Voltar