Nem pro gasto

Newton Braga

Com os respectivos perigos de qualquer generalização, a afirmação que se impõe, numa conversa sobre literatura espírito-santense do momento é esta, de certo dura: acontece que não há. Temos um punhado de rapazes e cavalheiros espalhado pelo Estado que têm, de fato, o vírus: a intensidade é maior ou menor e há exemplos comoventes de resistência física, moral e intelectual. Mas com a maioria o usual é brotar com entusiasmo da juventude e ir se quebrando no cais, até parar de todo, depois de infrutíferos arrancos no motor. Porque a letra de forma é cara e difícil.

Não temos publicações literárias visíveis e não temos editores. E, se, como se acredita de um modo geral, literatura é um meio de expressão e comunicação, de um modo geral também o que se verifica é o sujeito desistir de continuar falando sozinho, escrevendo e guardando na gaveta, depois de devidamente datilografado e grampeado. E note-se que não estou falando em ganhar dinheiro com literatura, coisa que as imaginações arrojadas de nossos homens de letras não conseguem conceber: estou falando mesmo é de escrever de graça ou pelo menos gastando pouco no que se escreva e se queira ver publicado.  

Junta-se a isso o fator migração. Os trabalhadores rurais procuram as cidades, os craques de futebol do mato vão cavar o profissionalismo nas metrópoles, as professoras estaduais vão ser datilógrafas e escriturarias no Rio: os literatos também estão dentro da regra. De uns tantos anos para cá, principalmente, o time local das letras tem sofrido desfalques enormes, e sempre agravados. Sem revistas, sem jornais, sem editores, e com a saída de alguns valores dos mais ponderáveis, é fácil não digo o atestado de óbito mas o de paralisia da literatura capixaba.  

O ideal era eu poder entrar nesta página contando vantagens que afagassem o nosso bairrismo, mostrando “lá fora” (a sedução desse “lá fora”) que temos um punhado de gente boa, que estamos trabalhando, e-tal-e-coisa. Até me dói um bocado não poder fazer isso: é que eu não ficava com a consciência sossegada. Porque - que diabo - temos gente capaz, como um pedreiro novo, um guarda-livros, um alfaiate ou um barbeiro é tão capaz como qualquer outro pelo mundo afora.

Mas as condições são tais que para um escritor destas bandas a solução para a qual as circunstâncias o empurram é passar de produtor a consumidor. O sujeito vai lendo, fazendo seus projetos, imaginando como seria bom se... e fica nesse marca-passo o resto da vida.

Outro dia eu andei procurando um papagaio pra comprar. Um conhecido da roça que abordei tinha um, muito bom, falador como ele só, até parece que o bicho era gente, entendia tudo e falava tudo. Mas não era pra vender não senhor.

- Aquele não: é pro gasto.

Um domingo desses li uma crônica de Rachel de Queiroz (como essa dona está escrevendo bem!) em que ela nos contava um caso acontecido com uma professora de música lá do norte. Era uma dona decidida e um dia a filha do presidente do Estado, que era aluna dela, chegou atrasada e disse que era porque o seu automóvel enguiçara. O automóvel era do governo, e a professora estourou: seu, coisa nenhuma. É nosso. Foi comprado com o nosso dinheiro. A casa em que você mora também. É tudo nosso, comprado com o meu dinheiro, é tudo do povo.

Não sei que fim teve uma tese que apresentei ao Congresso Brasileiro de Escritores. Constatando o fato de que o escritor da província não tem editor eu sugeria a organização de concursos anuais. Os governos estaduais pagariam os prêmios e a publicação dos melhores livros. O julgamento seria feito no Rio, por juízes remunerados, e por designação da Associação Brasileira de Escritores e do Instituto Nacional do Livro.

Naturalmente que isto não seria uma solução. Mas era um incentivo bom e ia tenteando a gente por aqui e pelas cidadezinhas do Brasil e sempre iria aparecendo um pouco de produção. Mas eu estava escrevendo a tese e pensando na possível reação: pedir auxílio do Governo, que absurdo! Mando Rachel de Queiroz buscar aquela dona no norte - é no Ceará? - pra explicar que o dinheiro é nosso, o governo é nosso, e que nós podemos e devemos dizer como deve ser aplicado o nosso dinheiro e como e qual deve ser o novo governo.

Porque, como estamos, os escritores da província não têm nem aquela serventia do papagaio do meu conhecido da roça.

Cachoeiro de Itapemirim - maio de 1945.

 

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