Memória das cinzas

Encontro póstumo com Fernão Ferreiro
com ilustrações imaginadas à Gustave Doré

 

Luiz Guilherme Santos Neves

 

Conto 10

Enquanto descíamos pela encosta, uma neblina estranha pousou como corvo sobre nossas cabeças, numa mudança de tempo repentina. No sopé do morro, a cerração atingiu o auge e, por pouco, eu e o poeta não fomos atropelados por dois corcéis, um branco, outro negro, que de nós se aproximaram num galope surdo, sendo retidos bruscamente pelos encapuzados que os conduziam.

– Eia lá! – gritou um dos cavaleiros, do alto do cavalo negro.

Mas foi o seu companheiro que reconheceu meu amigo e o saudou com júbilo:

– Mestre, tu por aqui!

Passado o susto, apearam os dois para festejar Fernão Ferreiro. Eram poetas, e meu amigo me apresentou a eles.

– Este é Antão Reis (com jeito de poeta infante) e este é Fausto Barbosa (de face sorumbática). Conheço-os de priscas eras e vários poemas. Aqui ao meu lado tenho um prosador que veio a Trapisona em demanda do graal da Poesia, seu sonho de cruzado lírico. Mas dizei-me: o que vos move nesta cavalgada fantasmagórica e desabrida? 

– Fugimos da tormenta que se avizinha... – disse Antão Reis.

– Que tormenta? – perguntei, tentando perlustrar o céu para além do pálio da neblina.

– A tormenta não se vê, se pressente quando na pele se tem poros sensitivos como os meus – disse Antão Reis.

A tormenta anuncia noites infinitas, a tormenta pressagia gélidas madrugadas – dramatizou Fausto Barbosa.

– Antes que venham as tempestades, se tempestades estão para vir – disse Fernão Ferreiro –, qual é a forma mais pressurosa de se chegar ao mar de Trapisona?

– A forma mais pressurosa é a cavalo – informou Fausto Barbosa enfatizando o adjetivo. – Para nós será uma honra levar-vos à garupa.

– Habitualmente somos pedestres, porém, nas circunstâncias atuais, aceitamos o convite – concordou meu amigo, falando por si e por mim, sem esclarecer as circunstâncias a que se referia.

Assim, eu, na garupa do cavalo negro, e Fernão Ferreiro, no corcel do poeta infante, fomos levados rumo ao mar de Trapisona, numa cavalgada fantástica que se fez em meio a diálogos versejados, cantados pelos poetas com vozes peregrinas. Abriu o recital Fausto Barbosa:

A tarde dança e chora e grita e cala
à espera de noites violadas pela ventania.
Lágrimas frias descem de montes neblinados
e ocupam todos os valores, virando mar.
Nus, enfrentamos feras demoníacas,
Nus, comemos mel e gafanhotos no deserto.
O afogado olha espantado e solidário
As lesmas que lhe sobem pelo rosto hirto,
Fazendo cócegas como no tempo de eu vivo:
As cinzas frias são joias que se foram.
Depois foi a vez de Antão Reis, o poeta lúdico, expandir a sua lira:
Na Prainha o tempo não se escoa
ora na areia, ora na água,
correndo ou pescando,
o canal, o oceano, nunca serei adulto.
Serei sempre mágico,
embora tenha medo do mar alto,
de seus mistérios e das ondas
maremóticas que destruirão
navios, cidades e terras cultiváveis.

De sua parte, recitou Fernão Ferreiro, e não o fez cantando, mas falando com a voz pausada e triste:

Tenho medo de morrer agora, medo de 1984,
tenho medo de outro verão tão quente,
tenho medo do anunciado fim-do-mundo,
entre sonho e loucura, entre demônios,
na estrada de Damasco, batendo congo,
esquinando a esquizofrenia assumida,
eu deste mundo não sou, quem sou eu?

– E tu, prosador, que à garupa vais do meu ginete, não abres a boca, não dizes nada, mergulhado em silêncio de siri?  Por que não somas um verso da tua lavra aos que ouviste? Compartilha conosco a tua verve – acutilou-me Fausto Barbosa, virando a cabeça de lado para falar comigo.

Diante do convite, eu poderia ter perguntado ‘que verve’, ou dizer simplesmente ‘eu passo’, como havia passado quando me recusara a entrar no casarão guardado pela deusa e pela serpente. No entanto, encolhi-me timidamente para fugir ao desafio.

Meu recolhimento, porém, não passou incólume porque Fausto Barbosa contra-atacou impiedoso:

– A poesia, meu amigo, às vezes está em uma única frase, aparentemente sem grandeza. Dou-te exemplos: ‘Nas páginas dos classificados, li oito anúncios de missa de sétimo dia para um só morto’; ou esta outra, bem sintética: ‘E agora, José?’ Ouça mais esta, tirada dos Cantos de Fernão Ferreiro: As manchetes do dia me estarrecem. Diz uma também, Antão Reis, para que o nosso amigo veja como é simples.

Ao que respondeu Antão Reis, de bate-pronto: – ‘Vira e mexe, o mingau não chega ao ponto, porque a colher não é de pau.’ Mando uma segunda – gritou ele, animadinho: – ‘Vão-se as horas, vão-se os dias e a porca sempre torce o rabo.’ Uma terceira, na sequência: “Penedo vai, Penedo vem, Penedo é terra de quem quer bem”. Meu arsenal de munições não se esgotou. Uma quarta, disparo sem que me peçam e me impeçam: ‘Não há previsão de mau tempo na grande área clara do mapa.’

– Exceto esta neblina pesada que embaça a nossa cara... – disse Fernão Ferreiro, fazendo-nos rir a todos nós, e atalhando o furor uterino do jovem poeta.

– Viste como é fácil, prosador? Não parece uma grande brincadeira? Entra na roda, canta conosco – pressionou Fausto Barbosa.

Por conta, todavia, da minha incapacidade de abrilhantar a cavalgada dos luzidos menestréis, comentei, evasivo:

– É triste a incompetência minha: fazer da prosa frustração da poesia, eu que não sou da Dinamarca o príncipe insano, apesar de levar comigo o pó de uma caveira. Por que me curvar à insistência dos amigos e de minha autoria lavrar versos sem eira nem beira?

– Pois acabaste de cometer um poema, meu amigo, um poema-síntese, que apesar de criado inconscientemente torna o seu autor digno de galopar com os cavaleiros de um apocalipse épico – comemorou Fausto Barbosa.    

– Foi sem querer, senhores, juro que foi sem querer... – justifiquei a minha distração, contrafeito com o elogio recebido.

– É o contágio, prosador, o santo contágio! O caminho é este: deixa aflorar o verbo ao sentimento que o poema se faz – estimulou-me Antão Reis.

– Faz uma segunda tentativa... – desafiou-me Fausto Barbosa, reincidente. – Os poetas são linhagem em delirium tremens. Todos eles, ou todos nós, sem exceção: nobres e plebeus, heróis e santos, pobres e ricos, contam-se milhões,como diria o nosso mestre aqui presente Fernão Ferreiro. – Não deixes, meu caro prosador, passar em vão o teu fervor inebriante... Dá ao transe voz e vida!

– Vamos lá, prosador, arremete de novo, salta do galho e tenta o vôo... – espicaçou-me Antão Reis.

Sem saber se eles falavam a sério ou por debique, cedi às investidas. Na dúvida, porém, aventurei-me pelo meio-termo:

A cavalo e sem esporas
tenho um curso completo de poética;
a galope e sem a brida,
junto a mim cavalgam versos
no espesso da neblina,
que subvertem a minha prosa. 
Se não dormir no ponto,
se não perder o estribo,
se puser os pingos nos is,
se seguir o figurino,
vou acabar entrando,
ai de nimim, ai de nimim,
na academia de letras de Sabugosa...

Gente, gente, ó xente como se dizia antigamente, poesia tatibitante de aprendiz, porém, com garra – vibrou Fernão Ferreiro, erguendo os braços e quase caindo da garupa em que ia enganchado. – É assim que os poetas desabrocham e assim devem continuar lavrando sem descanso a horta das palavras, regando com amor o broto das ideias, porque a poesia é árdua. É preciso bater e bater os versos na bigorna, com amor e pertinácia, para extrair da brasa do ferro as fagulhas do poema. 

– Mas devemos ter cuidado com os versos que parecem versos, e não são. Eu os chamo de coelhos enganadores porque têm cara de gato. Se a poesia é árdua, como disse muito bem o nosso mestre, ela também apronta muitas e boas – interferiu Fausto Barbosa com seu crônico pessimismo.

– O amigo poderia ser mais propedêutico, pois no limiar do aprendizado me deparo... – encaixei o meu pedido. 

– Serei, sim, mas veja que o teu pedido já tem em si um fluir natural de verso ritmado, o que é bom sinal. Quanto a ser claro, ao invés de explicações minuciosas, prefiro submeter-te a um teste de primeiras letras, sem querer ofender-te – falou Fausto Barbosa, reduzindo ao trote a nossa montaria. – Vou declamar uns versos e tu dirás em qual deles, a teu ver, habita a nossa musa, a divina Poesia. Feito?

– Será um teste de múltipla-escolha? – perguntei sorrindo.

– Será um teste de escolha única... Presta atenção aos primeiros versos:

Há um crime passional em andamento:
A amante vai matar o amante
Num toque digital dado em segredo
E passará o resto dos seus dias
Chupando o dedo...
Isto é poesia ou um brinquedo? 

Agora, vamos aos segundos:

O vento sudoeste
Corrente abaixo carregava
O repicar dos sinos
Torres brancas
Weialala leia
Wallala leialala

– Então, prosador, qual é a tua escolha? – fustigou-me Antão Reis, enquanto Fernão Ferreiro me olhava de escanteio.

– Não tenho nem o que pensar... Fico com os primeiros versos, apesar de jocosos. Os segundos são para mim frases singelas... O vento carregando o som de sinos e torres brancas com aquele Weialala leia Wallala leialala final que parece piada de mau gosto...

Fausto Barbosa sacudiu-se numa baita gargalhada, à qual fizeram coro Antão Reis e Fernão Ferreiro.

– Fui reprovado, mestres? – perguntei encabulado.

– Os segundos versos são do poema O sermão do fogo, do grande Eliot! – fuzilou-me Antão Reis, ainda gargalhante.

– Walalalalalá..., perdi na grife? – reagi mordaz.

– Perdeste feio... – confirmou Antão Reis.

– Para fazer poemas, prosador, é necessário primeiramente se encharcar da leitura dos poetas. Poesia gera poesia... – proferiu Fausto Barbosa, bafejando a neblina com o calor da sua boca.

– E Eliot é o maior deles... – balbuciei.

– Epa lá, meu amigo! O maior é Ezra Pound! – contestou vivamente Fernão Ferreiro.

– Eliot é um dos papas – socorreu-me Antão Reis, soltando a pérola: – Abril é o mais cruel dos meses...

– Aí é que se engana o meu também querido Eliot – interveio Fernão Ferreiro, quase num murmúrio. – O mais cruel dos meses é Sagitário, mês em que eu nasci.

À dura intervenção do mestre em relação a si próprio contrapôs Fausto Barbosa com uma nota fúnebre:

– Estás produzindo um epitáfio ou a afirmação é apenas ressentimento doloroso? 

O poeta se fez sombrio, ensaiou uma resposta, pareceu ter se arrependido do que ia dizer, e saiu-se por outra porta:

– Epitáfio não é, tanto que, à possibilidade de um deles, a que nunca aspirei, respondo em versos que agora faço de improviso, que são um recado e um pedido – e Fernão Ferreiro os disse olhando diretamente para mim:

Quero que meus ossos
se purifiquem em cinzas
e ao mar sejam lançados
no dia x, do mês de y
do calendário insular.
Quero que, no mar,
as cinzas virem pétalas
e que fique nas pétalas
a memória do poeta
que eu fui.

Coube-me quebrar o silêncio que se seguiu, e o fiz com voz de coroinha:

– Com todo o respeito, mestre, posso sugerir uma pequena modificação ao teu poema? – Como ele aquiescesse, eu disse:

– Não seria mais indicado se a composição terminasse com o verso ‘que fique, nas pétalas, a memória do poeta que se foi?’

– Alvíssaras, nobres cavaleiros, alvíssaras vos quero dar... – saudou Antão Reis quicando na sela. – Temos aqui um discípulo a reparar o mestre! O aprendiz, a galope, avança com sucesso!

Antes, porém, que mais dissesse o intrometido jovem, respondeu Fernão Ferreiro:

– Aprovo a tua sugestão, parceiro. Aprovo-a porque cada vez se morre mais definitivamente e depois de morto que me importa que eu fui ou que se foi? Dá tudo no mesmo. Mas lembra-te, e para ti falo perto do ouvido:

Para fazer um bom poema, um só
necessito de 8.000 anos. Uma trova,
uma simples quadrinha 80 anos, pois
um verso puro e terso, um verso mesmo
o céu só me concede de vinte em vinte anos.
A poesia, em si, prescinde da palavra, é êxtase.

– Já que nesta tertúlia sobre poesia acabamos falando de epitáfios, quero deixar o meu aqui antecipado – intrometeu-se Fausto Barbosa, voltando, melodramático, à vaca fria:

Aqui jazeu o poeta ensandecido,
Aqui jazeu o chantre dos vulcões,
Aqui jazeu o menestrel desafinado.
Aqui jazem, agora, todas as antigas esperanças.

– É belo, belo, muito belo! – exultou Antão Reis. – Compro-o por uma coroa de louros...

– Não está à venda – retrucou Fausto Barbosa, fechando a cara.

– É belo, mas é triste – observou Fernão Ferreiro. – Por isso o meu epitáfio estará na voz do vento. Mas esse é um assunto sobre o qual o Buda não expressou opinião...

Depois destas últimas frases, proferidas em voz mortiça, nada mais se disse durante o resto da jornada em direção ao mar de Trapisona.

[Décima Primeira Ilustração Imaginária: o poeta e o discípulo quase são atropelados no meio de uma neblina densa por corcéis de patas erguidas no ar, cavalgados por dois poetas vestidos com seus trajes farricocos.]

 

Conto Undécimo

À beira-mar paramos todos: poetas e cavalos – eu dentre eles.

O conto undécimo ao qual chegamos (todavia Conto 12, pela ordem natural da aritmética), deveria ser o último, mas se faz penúltimo porque assim o quiseram os fados (maus fados?). Seja como for, esta é uma questão sobre a qual Fernão Ferreiro não expressou opinião (e nem lhe foi pedida), ocupado que estava em se despedir de Antão Reis e Fausto Barbosa.

Quando estes partiram, levando na garupa dos ginetes a parte densa da neblina que nos havia acompanhado desde o pé do monte Alvo, Fernão Ferreiro veio a mim e disse:

– Estamos novamente a sós, irmão antigo, Ermano Prisco. Faça agora o que tem que ser feito, pois, o que resta a fazer, eu faço.       

A alguns passos do local em que os poetas nos deixaram, o mar lambia o cais em ondas rumorosas. Avancei o mais que pude em direção à água e chamei, num assovio agudo, o único barqueiro que se encontrava de plantão com seu bote preso a uma estaca.

Quando a embarcação acostou no cais, eu e Fernão Ferreiro saltamos dentro. Mas foi meu amigo quem deu a ordem que ia sair da minha boca:

– Naveguemos! – E acrescentou: – Toda navegação é uma passagem, um começo e um fim.

O poeta acomodou-se à popa e eu sentei-me ao seu lado, no segundo plano que sempre me coube, desequilibrando o barco apesar da minha magreza e pouco peso. O barqueiro remava decidido tocando as águas com os remos – plac, plac, plac – como se as acarinhasse enquanto a tarde intrometia-se na neblina agora tênue. (Se é oportuna uma citação de Eliot, citado seja, em homenagem a Fernão Ferreiro: “enquanto o poente no céu se estende”.)

– Não estaremos no lugar errado? – indaguei do poeta, quebrando o silêncio em que estávamos. – Isto aqui parece um rio!

– Rio para quem o vê, mar para quem o navega – respondeu meu amigo.   

– Há sempre nos poetas um modo novo de dizer as coisas... 

– Eu não inovo, prosador, eu só invento, dando um timbre modificado ao velho canto de Orfeu. É assim que faço poesia.

– E por que poetar? – não contive a pergunta que me devolvia às angústias recorrentes do meu demorado aprendizado.

– Por ti, eu não sei, nem pelos outros. Por mim te digo que sem a poesia eu sufoco – explicou meu amigo pacientemente. – Pensei que já tivesses arquivado este capítulo...

– Meu caminhar é lento. Direi até, pela complexidade da matéria, que é tortuoso. Às vezes penso que descobri o mapa da mina, mas logo descubro que dei com os burros n’água, preso a uma visão de mundo miudamente pessoal.

– A poesia é tormento, prosador...

– Quando voltávamos do monte Alvo tu disseste que ela é árdua, agora que é tormento? Que entendimento prevalece, mestre?

O poeta sorriu e disse:

– Ambos, meu amigo, porque ambos se completam. Só em casos raros a poesia é derrame de estrelas. Ainda assim têm que ser colocadas no lugar que lhes compete, dentro do poema. Mas não te esqueças de que estou exprimindo um entendimento, não um princípio absoluto. Outros definiram a criação poética por vias diferentes. “O verso exige a nostalgia, a pátina do tempo, a evocação”, eis uma dessas variantes a que me refiro, que é enunciação de Grande Mestre. Já houve quem dissesse que a poesia vem antes do poema e outro mais que a poesia é silábica, ou algo parecido.

– Estou me lembrando do Weialala leia Wallala leialala de Eliot... – saquei como exemplo.

Sem dizer nem sim nem não o poeta fez uma pausa, uma longa pausa, antes de continuar.

– Vou te ensinar uma receita, prosador, para superares tuas vicissitudes poéticas, teus dolorosos impasses criativos: faze poesia com os olhos voltados para dentro de ti mesmo, vendo, no entanto, o que se passa ao teu redor. Ninguém faz poesia olhando apenas para o próprio umbigo. Sobretudo, acima de tudo, é necessário ter disponibilidade de espírito porque, para fazer poesia, é mister perder a noção do tempo e se dar tempo. A um jovem poeta já foi ensinado certa vez que “ser artista significa amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva”. E quando a condição for pouca, constrói a tua casa devagar...

– Mas se... – ia cortando eu.

Mas se digo eu, pois ainda não acabei, e a lição tem um apêndice: mas se fizeres poesia, assume com coragem a tua arte, teus versos claudicantes, tuas rimas canhestras, tua métrica desconexa porque todo poeta é a poesia que é capaz de fazer, e ponto final.

Deixei passar um tempo e voltei a perguntar, soprando as brasas da fogueira:

– O mau poeta sabe que é mau poeta?

– Infelizmente, nunca desconfia. Mas a irmandade dos poetas tem muitos graus de hierarquia. Ocupa sem medo o degrau que é o teu, e sê feliz.

– Magister dixit?

– Não o mestre. Falou o poeta.

Ainda me pairavam indecisões na alma.

– Em que língua devo poetar? Na erudita? Na arcaica? Na popular?

A resposta do mestre veio ligeira:

– Na língua que estiver a teu alcance, até na língua do p. Se de nenhuma delas dispuseres para uso imediato, inventa uma! Os tempos são de inovação ou de invencionice. Quem melhor invencionar, melhor invencionado ficará, lembra-te da epígrafe que criamos juntos? Portanto, “invencione” à vontade, faça-te criativo. Nesta era tecnológica a poesia avança para uma linguagem digital. Eu li em alguma página, talvez em Sabato, que “cada homem se arranja muito bem com a língua que mamou”. Faze-te loba e suga as próprias tetas!

Tive de inspirar fundo antes de indagar:

– Como devo entender esta imagem?

– Ela vem de uma igreja, é quase sagrada. Tu foste testemunha porque estavas lá. Entende-a, porém, como uma abstração poética, muito embora de abstrações poéticas esteja a Poesia cheia. Versos e versos existem que somente são explicáveis pela experiência pessoal do seu autor e, às vezes, nem por ela.

E, erguendo-se de repente no barco balançante a ponto de obrigar o barqueiro a suspender o plac, plac das remadas, meu amigo declamou solenemente:

Poesia alguma será verdadeira
se não vos der uma vontade insopitável
de parar a leitura e fazer um gesto,
que já está embutido nas palavras,
e que o Poeta vos quer, sensualmente, transmitir.   

Dito o que, se fez trágico, como um monumento a bordo: – Saí do fogo e caminho para a água. O dia é hoje, a hora é excelentíssima. Este é o penúltimo canto. O último não se canta, vive-se, naquele instante único em que o ser sozinho, tal qual nasceu, pisa no abismo, devolve ao todo a pouca energia que lhe foi emprestada... e entra no país do estado incerto, na terra do crepúsculo, no reino do não mais, do nunca mais... Cumpre, pois, irmão, a segunda parte da missão que te moveu a Trapisona e que a ti eu confiei faz algum tempo, em pleno gozo das minhas faculdades mentais. Aqueles que me viram e viraram o rosto, aqueles que, alguma vez, negaram os meus direitos, aqueles que me caluniaram à beira-rio, a todos eu perdôo... Se a poucos ofendi, foi sem querer; se a muitos desprezei, não foi intencional, fica o dito pelo não dito, não está mais aqui quem falou, eu me retiro. Aos meus amigos deixo um recado, eu, que tenho a mania de deixá-los: não rezem nem chorem: leiam um poema. Agora chego ao mar e digo adeus. Levo comigo Pedro Malazarte, o rei das travessuras... – E sentou-se de novo ao meu lado, pensativo.

– Chegamos ao fim da jornada? – perguntei emocionado.

Ele não respondeu imediatamente, mas quando o fez, me disse: – É quase o fim: o poeta farricoco tira as vestes, entrega a trombeta ao zelador da Irmandade, e com fome e sede, nu como nasceu, caminha para o ponto Ômega... E para que seja esta partida apoteótica, invoco mais uma vez o Alighieri, com a humildade de quem recorre à força de um santo:

“Não mais te falo nem te aceno, entanto,
Possuis vontade própria, reta e boa,
Cumpre os ditames seus: a ti, portanto,
Pois de ti és senhor, dou mitra e coroa.”

Após declamar os versos, tirou de supetão a coroa de louros que levava na cabeça e enfiou-a na minha, dando-me a doída sensação de que me consagrava com um laço de espinhos.

– Mas nunca serei poeta... – teimei, baixinho.

– Nunca serás poeta se abafares dentro de ti a dor da poesia e se não deres vazão ao teu ardor poético. Se assim fizeres, morrerás seco – profetizou o poeta, que me ouvira. – Não foi Dante que escreveu a Comédia, meu caro prosador, foi a Comédia que se escreveu por meio de Dante. A imagem é esta, ainda que de hiperbolismo discutível. Portanto, a ti exorto: Canta, canta, faz da vida poesia. – Sentando-se novamente na popa do barco, concluiu: – Aqui a vela bruxuleia e se apaga...     

Em seguida, estalando o polegar contra o dedo médio, deu-me o sinal que valia por uma ordem a ser obedecida.

Foi então a minha vez de me levantar desajeitadamente devido ao balançar do barco, e dizer, de costas para o meu amigo: 

– Se a hora é esta, que seja feita a tua vontade!

E retirando de dentro do meu alforje uma urna de prata, cuja tampa desatarraxei com dedos incertos, atirei ao mar, num gesto litúrgico, as cinzas do poeta. Quando me virei para lhe dizer que a missão estava cumprida, ele havia desaparecido.     

Retornando ao cais, paguei sem protestar os dois carontes que o barqueiro me cobrou pelo direito de barcagem  – um pelo poeta ido, outro por mim que tinha, no mínimo, a cara lívida de um morto – e recolhi-me no fim do conto undécimo, para chorar, chorar amarguradamente meu choro desbragado, que é uivo lancinante.

[Décima Segunda Ilustração Imaginária: de dentro de uma canoa conduzida pelo barqueiro, na qual o poeta está sentado na popa e o discípulo aparece em pé, este lança ao mar, de uma urna, as cinzas de um morto.]

  

Conto sinótico-um

Conto em que se declara, para o saber geral dos povos e das gentes, que há, nos Cantos de Fernão Ferreiro, um verso magistral (dentre muitos outros) que fala da dor, com grande expressividade (se anímica ou não, caberia ao poeta explicar): Chorei, chorei pitangas em minha cama-sauna...

Foi o que aconteceu na minha crise de pranto copioso.

Quando retornei a mim perambulei a esmo por Trapisona no rescaldo da memória do poeta e da ressonância dos seus versos.  

Sob um impulso incoercível revi lugares em que eu e meu amigo havíamos estado juntos: o teatro onde em moto interminável se desenrola a triste tragédia humana; o palácio real, onde reencontrei o boneco-sentinela com sua arma sem bala, em falso ponto de bala e com o sabre luzidio mas sem o bilhete que o poeta havia deixado para o rei.

Poupando-me de lembranças opressivas, de propósito evitei a fortaleza das lamúrias labirínticas, a igreja dos papas e da loba, e o casarão da deusa com a serpente sobre os olhos.

Mas à barcaça das leis desci pelo túnel de arbustos perfumados, restringindo-me a parar no passadio que dava acesso ao barco, onde, porém, não me livrei de um novo abraço do tamanduá de portaria que me deu os pêsames pelo desaparecimento do poeta e me informou que já estava em tramitação na casa um projeto para dar o nome do meu amigo a uma das ruas de Trapisona...

– Por que não dar a essa rua o nome de Pedro Malazarte? O poeta ficaria muito mais satisfeito... – disse-lhe com desdém profundo.

O tamanduá me olhou com a cara abobalhada e respondeu:

– Pensei que o senhor fosse aprovar a homenagem. Além do mais, nunca ouvi falar em Pedro Malazarte...

– Pois não sabes o que perdeu... – E me retirei voltando-lhe as costas para prosseguir no itinerário do adeus em que eu estava sublimado.

No circo, aonde também fui, e que se encontrava vazio de humanidade, o respeitável público recolhido às suas tocas, reli, ainda visível na lapela da tenda, a poesia que o poeta escreveu para a mulher barbada e, não longe dali, no banco de pedra junto aos ciprestes em que o meu amigo aceitou o meu pedido para não ir ao hospício, senti-o sentado novamente ao meu lado, o que me prostrou numa segunda crise de pranto incontrolável.

Todavia, por muito que andasse de um lado para o outro, por muito que o desejasse rogando que os bons fados os trouxessem ao meu encontro, não mais me deparei com Fausto Barbosa nem com o poeta infante Antão Reis, para nos consolarmos juntos da perda do Ferreiro.

Finalmente, no cais das ondas rumorosas, vali-me outra vez dos serviços do barqueiro e atirei ao mar a coroa de louros que meu amigo, num gesto generoso, à força me enfiara na cabeça mas que, assim que ele se fora, parei de usar.

Quando saí de Trapisona, saí com a disposição de esquecê-la para sempre, sentindo-me tão irreversivelmente prosador quanto lá chegara, o que significava dizer: um rudimentar na prosa, no verso um derrotado.

Mas Trapisona não me deixou em paz.

Dia após dia se insinuou em minha lembrança, apossou-se da minha mente, dominou-me o pensamento, abatendo-se sobre mim num turbilhão de versos que na voz do bardo ausente me engrandeciam de acústica, salpicando-me de recordações e tirando-me o sono no alvor das madrugadas.

Nesse delírio da saudade, os sons da memória me aturdiam sem perdão, num chorrilho de palavras ouvidas ao poeta que a mim retornavam em ritmo frenético para mal de minhas penas literárias, engolfando-me num grande novelo de percussões vibráteis que explodiam sobre a minha cabeça e dentro dela, amontoando-se numa só massa verbal em que me cabia, por trono e centro, o olho gelado do furacão ardente: de médico, poeta e louco... a tua busca não é nova... nada  fazer, não interferir, apenas olhar... é muito difícil, quase impossível amar o próximo... o canto pode não ser belo mas é triste... tudo é símbolo... só um Deus pode adorar outro deus... aquele  que vê a impermanência de tudo, aquele vê...  chegou a hora do amor do universo ... há regras que cumprir eu passo... valeu a pena pois eu vi a deusa nua... tenho na mente a esperança da Terra Prometida... agora todas as contradições estão resolvidas... tu sabes que o meu pecado sempre foi o da gula... o belo poético, procurei-o em todos os hortos... em Trapisona quando o circo chega o tempo muda... avia tu o poema para o nosso amigo...  ao hospício vamos ... está bom mas pode ficar melhor... que espécie é esta que chegou tão longe... assim falo eu porque sou o rei de Portugal... não desanimes, parceiro... há um louco na montanha, ele é um sábio... o oceano chega aos mais altos da serra... ah! essa terrível comunhão humana a que estamos condenados... êxtase é fundamental para a criação de mitos... foi das vísceras que os meus cantos provieram... para escrever meus cantos padeci milênios... exceto esta neblina pesada que embaça a nossa cara... bravo, bravo, é assim que os poetas desabrocham... mitos são borboletas... quero que meus ossos se purifiquem em cinzas... no dia x, do mês de y...  a poesia é tormento... assume com coragem a tua arte... saí do fogo e caminho para a água... estamos novamente a sós, irmão antigo, Ermano Prisco ... o poeta farricoco tira as vestes... aqui a vela bruxuleia e se apaga...

Obsedado pelas frases que, dentro de mim, reverberavam em ricochete, já eu não era quem eu pensava que eu fosse porque era como se tivesse me transformado nas próprias palavras que ouvia à voz trovadoresca do poeta que se fora. As dúvidas – sempre inafastáveis – me abatiam e transtornavam. Afinal, quem era eu e em quem realmente me tornara?

Seria eu o ser encantado que se rendeu à voz do poeta que cantava os Cantos ou aquele que nos Cantos se continha em estilhaços?

Seria o que passou a noite com uma estranha, e não viu a poesia embaixo do umbigo, ou o que acolheu nos braços as lamúrias dos tiranizados?

Seria o que descobriu a verdade atrás da máscara do teatro ou o que aceitou que o homem Cristo seja homem e seja Cristo?  

Seria o boneco estático com a arma calada à porta do palácio ou a serpente que no olho da deusa armava o bote?

Seria o que enfrentou os morcegos que voavam no confessionário ou a loba que deu de mamar aos papas ao pé da cruz sem Cristo?

Seria o que se curvou de bom grado aos encômios da raposa ou o enojado que vomitou o discurso da assembleia?

Seria o que furtou os versos do poeta para fazer feliz o anão do circo ou o que não foi ao hospício e daí tirou proveito?

Seria o que subiu ao monte com as pernas bambas para ver do alto a terra em festa ou o que revelou ao poeta as cinzas da partida?

Seria o que enganou o rei para se livrar da morte ou o lagarto sedento que bebeu as lágrimas das cinzas e perdeu no ar os olhos da cegueira? 

Seria o que descobriu, ao sopro do vento sudoeste, que Wallala leialala forma um verso consagrado ou o ginete que no ventre da neblina cavalgou em trote surdo?

Seria o que rimou ão com ão e ar com ar sem cair da garupa do cavalo ou o que disse a palavra errada na hora certa, e foi motivo de riso?

Seria o que negou ao poeta a perfeição do verso na jornada épica ou o que atirou ao mar, sem que a mão tremesse, as cinzas da poética?

Seria o que chorou pitangas como um bezerro desmamado ou o que viu o que ouviu e sucumbiu na escuridão da descoberta?

Seria o que chegou cheio de prosa e se foi com a dor na alma ou o que pagou o dinheiro da passagem sem que o barqueiro explicasse o mistério da vida e da morte? 

Seria o que ouviu os versos do poeta e conheceu o reverso de si mesmo ou seria o que nunca foi, e agora é?

Ah, Caronte, se tu tivesses as respostas para todas estas perguntas e não apenas a ganância pela moeda da barcagem, talvez eu pudesse voltar a ser o que eu era antes de ir a Trapisona e antes de Trapisona vir a mim constantemente, com sua voz insistente e dolorosa.

Em quem me tornei, afinal, e realmente?  

 

Conto sinótico-dois

Este conto sinótico é na verdade um conto de luto que não quer ser conto, mas canto, canto em tom de descante que irrompeu sem intempestividade, passo a passo, temendo que cada novo passo fosse um mau passo, talvez um descompasso, razão pela qual avançou de leve, muito de leve, porque é de leve que se pisa em terra estranha.

Com esta ressalva, embora frágil, ponho-me à vontade e, relembrando as palavras do poeta-infante Antão Reis, salto do galho e tento o vôo num arrojo incontido de vate incipiente: 

No dia x, do mês de y,
à hora excelentíssima
em que tudo é nada e a voz se cala; 
quando na retórica de um minuto de silêncio
o vazio se instala;
quando os cães vadios uivam a esmo pelas ruas,
as hienas cessam o riso
e os pássaros emudecem e esquecem os cantos;
quando pedras sobre pedras se despejam
dos anéis das ventanias
e bailam no ar, enlouquecidamente;
quando das entranhas incontidas
explode o pranto,
e a Terra treme e vibra e roda
no sentido contrário ao do ponteiro dos horários;
quando não há mais o que dizer,
e não se diz,
não há mais o que falar,
e não se fala,
porque a palavra na garganta enrouqueceu em nó,
e criou limo;
quando não se vê no fim do túnel outra saída,
e a vida, a porca vida,
pede pressa
enquanto o corvo das horas ri e grasna;
quando tudo o que foi, já era,
e não pode renascer noutras esferas;
quando, enfim, o derradeiro gesto
que se contém nas mãos,
intransferível,
é osso de um ofício a ser cumprido, 
atirei ao mar as cinzas do poeta
em missão testamenteira
que a mim foi deferida
por escritura sem rasura,
lavrada em cartório,
quando o poeta era vivo,
podia assinar o nome,
tinha a pressão arterial no ponto certo,
a digestão perfeita,
achava-se no pleno gozo de suas faculdades mentais
e estava com a saúde em bom estado
(nas revisões de rotina, nada de tétrico,
exceto algumas perebinhas displicentes,
na epiderme clara,
facilmente erradicadas a bisturi elétrico).

Agora, que desincumbido estou
do meu pesado fardo,
chafurdado numa vidinha besta e comezinha,
– unhas por cortar,
barba por fazer,
comer na hora certa sem ferir a etiqueta,
andar ao deus dará sem que a coisa fique preta –, 
aos meus botões pergunto:
posso afinal dormir em paz
ou virá o poeta me assombrar durante a noite
juntando-se aos fantasmas que rondam a minha cama
para sacudi-la com estrépito
e puxar a minha perna com as tenazes dos seus dedos,
os cabelos de cinzas chamuscados,
pelo poeta que eu deixei de ser
sem que tivesse sido?

Agora (certo estarei ou estarei errado?),
restou apenas, por lembrança,
a herança das palavras dos seus Cantos,
forjados na bigorna do ferreiro,
transformados em ferro-brasa, em brasa e ferro, 
para que possa eu, em silêncio póstumo,
ouvir novamente a sua voz?

Fale, poeta!
Fale ao meu ouvido,
sem a mínima retumbância e alarido,
para que o tambor da sua voz possante e rija,
capaz de fazer soar das catedrais os sinos,
não me estoure os auditivos pinos.

Mostre-me, poeta, mostre-me o caminho
por onde terei que caminhar
(por quanto tempo ainda?),
aprendiz das letras
(porém, mau letrista)
aprendiz de versos
(porém tremendamente sáfaro poeta
que nunca dantes navegou um poema
do próprio punho sem naufragar redondamente).

Toque, poeta, toque com o seu fragor de bardo
a minha alma,
à mercê estou de sua memória,
submerso à sua sombra,
dependente da sua guia de magister
para que a bom porto me leve, ó piloto,
– talvez um triste porto inexistente
a bordo de uma ilha imaginária.

No dia x, do mês de y,
ao romper da hora excelentíssima
em que tudo se desfaz e nada importa,
atirei ao mar ...

Nenhum bem me fez este meu gesto,
ó, muito ao contrário,
a contrário senso, 
profundo desgosto me causou
ver o poeta voejar ao vento as suas penas,
em pó desfeito sobre vagas,
ex-carne e osso,
em viagem para o Nada. 

Se assim o fiz,
ao romper da hora excelentíssima
– sem previsão de mau tempo
na grande área clara do mapa –,
saibam os vates do mundo,
saibam os escribas da Terra,
foi porque assim tinha de ser feito.
A iniciativa do meu gesto
de mim não veio,
nem me foi tirada a tapa,
porque proveio de uma ordem testamental que me foi dada
quando a previsão da morte
era uma balela,
apesar de ser levada muito a sério,
desejo final a ser cumprido
sem que me fosse dado o direito de recusa,
do qual, nas honrosas causas, não se usa.

Portanto, e por fim,
se a disposição era testamentária e irrecorrível, 
(invoco em minha defesa o testemunho oficial dos cartorários
que têm fé pública  por honra do ofício)
por que haveria eu de resistir a ela?

Se assim foi combinado,
Se assim foi consumado,
e por mim ao pé da letra obedecido,
indago nestes toscos versos claudicantes:
por que então me causa tanto mal,
tanta dor e sofrimento
a visão das cinzas do poeta
se desmanchando ao vento?

Agora, aqui me calo, no rodapé deste canto (ou será no rodapé do conto?) e dou definitivamente adeus a Trapisona. 

O poeta serôdio que dentro de mim se atreveu a botar a cabeça de fora, a pedir a palavra e parolar farofas – “interlocutor do nada, falando aos peixes”, como diria Fernão Ferreiro – agora sai de cena, esgotado e vazio, para voltar a ser o despretensioso prosador que sempre foi.

Que sempre foi ou sempre fui? – me abala a dúvida, pertinaz e pertinente, mas que, no frigir dos ovos, dá no mesmo. 

O que ainda me resta por dizer, antes de cerrar o pano, apagar as luzes e me recolher à insignificância de onde não devia ter saído, é que assumo com coragem a minha arte malazarte, meus versos claudicantes, minhas rimas canhestras, minha métrica desconexa e... ponto final. 

 

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