Memória das cinzas

Encontro póstumo com Fernão Ferreiro
com ilustrações imaginadas à Gustave Doré

 

Luiz Guilherme Santos Neves

 

Conto 4

Seiscentos e sessenta e seis passos nos conduziram até a um prédio quadrangular e sólido em cuja porta principal uma sentinela tinha à mão uma baioneta calada, em posição de ataque.  

– Onde estamos agora?  – perguntei ao meu amigo.

– Este é o palácio real de onde se governa Trapisona.

– Aqui tu és amigo do rei? – inquiri em tom brincalhão.

– Poetas não devem ser amigos de reis, o que não impede que os reis sejam amigos dos poetas. Muitos fazem até alarde disso. Mas eu não alugo a minha pena para os poderosos. Outros que o façam para seus proveitos pessoais. Se o poeta é um mercenário: dêem-lhe uma caneta que em poucos minutos o discurso flui ledo. – E concluiu, arrebatado: – Não eu, senhores donos do mundo e da vida, pois tenho por lema nenhuma submissão experimentar.

– Ainda que te prives de dormir em cama real com as mulheres que escolheres...

– Ainda, porque não é questão de intransigência, mas de integridade, da qual não abro mão. Estou bem como estou, em paz comigo mesmo. E confesso, com pureza d’alma, que não quero mais guru, nem busco o pássaro azul. Chegou a hora de amor do universo.

– Podes ser mais explícito?

– Vou tentar para que compreendas corretamente o que quero dizer: Nada de errado em mim, apenas um certo calor interno que não pode ser reproduzido em máquina copiadora xerotérmica (seca e quente, se te interessa saber). Fui claro?

Para mim a emenda saíra pior do que o soneto. Dei a mão à palmatória:

– Pretendes dizer que atingiste a plenitude do estágio contemplativo?

– Não exatamente... Apenas que ancorei meu barco muito aquém da Taprobana, dando-me por satisfeito e realizado. Não me cabe ir além do porto onde larguei a minha âncora. E sacramentou, previdente: – Nele, peço-te com humildade, joga ao mar as minhas cinzas, sem querer salvar o afogado.

– Cumprimento-te pelas frases de efeito, mas me tira uma dúvida – disse eu procurando ser objetivo: – Ao palácio do rei, já tiveste acesso?

– Apenas como quem visita um museu de faraós para ver, com indiferença, um punhado de Amenófis e Tutmés embrutecidos pela glória – essa manteiga derretida em chá fervente, essa barretada com chapéu alheio, esse tabaco cheirado e espirrado... Agora é a minha vez de perguntar: ao palácio do rei, queres ter acesso?

– Não me bate à passarinha, salvo se tu insistires – respondi na defensiva. – Confesso que me amedronta passar pela sentinela que, de baioneta em punho, guarnece a entrada da casa real. Sobretudo, causa-me inquietação pensar que à nossa saída poderemos ser detidos. Sempre ouvi dizer que são frias as masmorras e que é volúvel o temperamento dos tiranos. E para mim todo rei é um tirano em potencial e todo tirano é uma criatura imprevisível. Há pouco tu cantaste um canto que comprova o que eu penso.

O poeta ficou calado como se avaliasse a profundidade das minhas ressalvas (eu as achava profundas) ou como se recordasse dos versos que havia declamado. Superada a possível indecisão, retomou o diálogo:

– O teu temor aos déspotas é compreensível, mas não o medo que demonstras pela sentinela, à porta do palácio. Não nos basta, para confirmar minhas palavras, estarmos ao alcance da mão do rei conversando amistosamente sem que sejamos decapitados? Repara bem, amigo: este soldado de arma com sabre na ponta parece gente, porém não é de carne e osso. É apenas um boneco em tamanho de gente, feito de massa plastificada. De verdadeiro só tem o fuzil para enganar os distraídos.

– E não há quem roube a sua arma? – perguntei estupefato.

– Todoslosdias e todaslasnoites. E todoslosdias e todaslasnoites ele é reequipado com uma nova baioneta.

– Por que não colocar então, na entrada do palácio, uma sentinela verdadeira? Não seria mais útil e econômico?

– Coisas de governo, meu amigo... burocracias... vantagens obtidas nas concorrências públicas para a compra dos sabres e dos fuzis, armamentos tão necessários em nossos dias... (A ironia explodia azul pelos olhos do poeta).

– Não roubam também o boneco fantasiado de sentinela?

Meu amigo sorriu e disse:

– Roubavam antes, sabe Deus para que, como parece ser doença em Trapisona, até que o rei baixou um decreto mandando pregar o boneco pelas solas das botinas no piso de ladrilho (novamente a ironia visitou o seu olhar). Mesmo assim, de tempos em tempos é necessário mudar os pregos oxidados pela ação da maresia que em Trapisona não dá trégua... 

– E tu, poeta, morador de Trapisona que apregoas abertamente teu amor por esta terra, não te insurges contra esse estado de coisas? Não obras um poema de revolta, não disparas em versos um grito de denúncia, não usas da tua musa para que surja um novo tempo? – foi a minha vez de ser irônico.

– Meu caro prosador, vejo que me cabe explicar tudo, pontim por pontim. Pois te explico: há regras que cumprir? Eu passo. Há regras que fazer? Eu faço. Sou imitador, não sou modelo. O mundo é irrelevante. Desconheço-o. Esta é a minha filosofia de vida, ou uma das minhas filosofias, porque homem algum, menos ainda poeta, há de se bastar com uma filosofia única. Mas vamos, que a jornada pede seguimento.

Tomou-me então pelo braço para entrarmos no palácio, ao que me opus com resistência.

– Prefiro beber cicuta com gelo e rodelas de limão...

– Não há o que temer, já disse – repetiu o poeta.

Como não estava convencido das tranquilizadoras palavras do meu amigo, ensaiei num golpe brusco que até a mim me causou espécie, sacar da mão da sentinela-fantoche a espingarda que se encontrava em posição de ataque. Foi o quanto bastou para que um alarme automático ecoasse por toda a Trapisona como relincho de cavalo bravo sem que a este chamamento estridente se apresentasse vivalma para defender o palácio.

– Estão mortos os que deviam acudir em defesa do rei? – indaguei assustado ao poeta.

– Não, estão indiferentes. Tantas sua majestade fez oprimindo o povo que não mais se move o povo para a defesa do rei. Este alarme inútil e enervante que fere os nossos tímpanos é, de certa forma, um prelúdio do ulular da multidão quando passar a realeza a caminho do cepo. Porque ainda hoje, prosador, não faltam guilhotinas neste mundo louco.

– Obrigado, poeta! – disse ao meu amigo. – Tu me deste o pretexto para não entrar nesta casa real. Se aqui não aflui o povo quando convocado com alarde para socorrer seu rei, por que haveria eu de visitar quem não merece o afeto de sua gente?

– Tens razão, amigo. Mas antes de irmos quero deixar uma mensagem para sua majestade. Se ela será lida ou não eu não sei. Mas o recado fica dado.

E tomando um pedaço de papel fez das minhas costas escrivaninha para rabiscar um aviso que espetou na ponta da baioneta, com o máximo cuidado para não reativar o alarme que havia cessado. Antes, porém, deu-me a ler o que havia escrito: Recomenda-se a todos os Srs. Governadores do Mundo que leiam, para a próxima aula, o capítulo “A economia budista” de E.F. Schumacher. O negócio é ser pequeno – Small is beautiful.

– Tens a pretensão, poeta, de que seja entendido o teu recado?

– Remotamente... Quando nada, servirá para épater le bourgeois...  

Em seguida, voltando-se para mim, disse com sua voz robusta e em tom profético:

Melhor, entanto, é ser-se musgo no beiral, muito melhor, é perseguir o saber obscuro.

Por derradeiro, estalou com força o polegar contra o dedo médio, como era de seu hábito, e proferiu a frase que eu mais desejava ouvir naquele instante:

– Vamos baixar em outro conto.     

[Quinta Ilustração Imaginária: o poeta espeta um bilhete na ponta da baioneta de um boneco, postado como sentinela à porta de um palácio, enquanto o discípulo põe as mãos sobre as orelhas para protegê-las do uivo de um alarme.]

 

Conto 5

Por uma vereda em declive caminhamos até um prédio situado atrás do palácio real. Uma aragem leve e fresca que soprava do Nordeste beijava nossas faces confortando-nos o espírito.

No curto percurso que trilhamos, nada disse o poeta e eu nada disse. Em silêncio sobre um chão de terra negra fomos, um pé lá outro cá porque era áspera a vereda, até um grande muro gradeado. Um portão de ferro fundido, com pontas que lembravam tridentes do diabo, dava acesso à passarela que, por sua vez, levava a uma edificação de caprichosa arquitetura com volutas e emblemas sobre as sacadas avarandadas.

À porta da nobre construção eu e meu amigo fomos barrados por uma deusa vestida com uma túnica branca, mal sentada num banquinho instável, o semblante cansado e o queixo apoiado displicentemente no cabo de um gládio cujo bico tocava o chão. Em torno da cabeça, a divindade tinha uma serpente que vendava seus olhos.

Apesar da posição de visível entorpecimento em que o réptil se encontrava, tinha-se a impressão de que se achava pronto para um bote contra quem provocasse a divindade, ao pé da qual uma balança jazia com seu único prato coberto de poeira.

Pressentindo nossa aproximação, disse-nos a deusa dos olhos cobertos pela serpe:

– ‘Parai e respondei-me. Que intentais? Quem vos guia na jornada? Efeitos não temeis dessa ousadia?’

– Esta fala está no Canto IX, do Purgatório de Dante – disse o poeta, cochichando ao meu ouvido um cochicho volumoso por ser sua voz redonda e cheia.

Se a deusa ouviu ou não o indisfarçável murmúrio do poeta, não o demonstrou, embora a cobra enrodilhada sobre sua face tivesse estremecido num espasmo de defesa, e aberto os olhos.

– Cuidado, poeta! – disse eu. – Estamos na mira de um bote! A casa a que me trazes tem como guardiãs uma deusa e uma serpente e não sei qual delas é a mais temível.

Antes que meu amigo pudesse retrucar ao aviso que lhe dera, a deusa ergueu-se com brusquidão à minha frente e, esgrimindo o gládio com a habilidade de um Zorro que soubesse exatamente o ponto onde ferir, inscreveu-me na testa, em sulco de sangue, as letras DV e PD, dizendo:

– Doravante, estrangeiro, a tudo o que pedires e a tudo o que disseres dentro desta casa hás de acrescentar as expressões data vênia e peço deferimento. Não se trata de mero formalismo, mas de uma questão de submissão. Uma submissão à qual ninguém se furta, sob pena de ser condenado na Balança – pontificou a deusa com voz tribunalícia. 

Assim falando, apontou-me o instrumento que jazia empoeirado no chão enquanto eu sentia o sangue literalmente subir à minha cabeça e deslizar morno sobre as sobrancelhas. Felizmente o poeta veio em meu socorro pensando-me o ferimento com sua mão pesada e detendo o sangramento que, todavia, era leve.     

– Não achas, poeta, que a poder de sangue derramado (o meu sangue, note bem!) e sob a ameaça da serpente é este um modo mui severo de se impor o jargão protocolar da casa aonde chegamos?

– Esta não é uma casa simples – esclareceu meu amigo. – É um cenáculo com suas idiossincrasias, regras e salamaleques. Aqui o que se pensa que é não pode ser, e o que se espera que seja não é.

– E sob a ação de uma lâmina furibunda... – acresci eu.

– Tens razão, meu caro: uma lâmina cruel e uma serpente traiçoeira enrodilhada sobre os olhos de uma deusa...

– Deusa que não esconde que está cansada de guerra, a ponto de mal se equilibrar num banquinho de mascate e de largar no chão a balança com que pesa os pecados do Mundo – não pude deixar de escarnecer, injuriado pela afronta de que havia sido vítima.

Ó injustiças que não cessam, tempos que não mudam! – prolatou o poeta querendo consolar-me. – Um dia fui juiz, outro dia fugi da Justiça porque aprendi que ao cabo e ao fim tudo será destruído.

– Valeu a pena esse duro aprendizado?

Após uma longa reflexão, disse meu cicerone:

Valeu a pena, pois vi a deusa nua. Hoje, posso afirmar, amigo, que se a deusa, à primeira vista, engana aos que lhe deitam os olhos, no fundo, no fundo não passa de uma triste figura. O que a mim importa é que pude descobrir que, por trás daquela imagem aparentemente imaculada, a maçaroca (entenda a expressão como quiser) é grande enquanto os párias, os sem-tetos, os joão-ninguém avolumam a massa dos deserdados filhos de Eva, quase esmoleres.

Encarei fixamente meu amigo e disse:

– Não te invejo a sofrida experiência, para mim chocante. 

O poeta fez um muxoxo com a boca, e falou em tom de discurso:

– Respeito tua opinião, meu caro, mas digo-te que tantas vezes fui julgado, que importa mais uma? O meu aprendizado pode não ter sido ameno, mas foi válido, pois, enquanto durou, devotei-me desabridamente à luta constante contra o que me pareceu injustiça. Busquei, e torno a dizer que desabridamente, uma justiça que seja camaradagem, amor, capaz deoferecer – e por que não? – oferecer ao ofensor a minha derradeira camisa, o último pedaço de pão. Afinal, meu querido prosador, tenho na mente a esperança da Terra Prometida.

Deixei que sua proclamação se diluísse na aragem amena e indaguei provocativo:

– Lograste êxito, ou o desabridamente que utilizaste em tua fala deveria ser quixotescamente? 

– Pelo menos posso dizer que agora todas as contradições estão resolvidas e ouso proclamar, alto e bom som, que as leis não são cumpridas pelos grandes.

– Sabe de uma coisa, poeta? Se teu aprendizado te levou a esta descoberta tão notória, por certo deste uma volta longa e dispensável em torno da deusa com a serpe sobre os olhos. Mil vezes preferiria ouvir de ti a apocalíptica advertência contida no sétimo verso do Canto 26, de Fernão Ferreiro, lembra-te dela:

Pelo sim, pelo não, saiam de baixo que lá vão mísseis,
febres de sezão, tosses compridas, tumores sem cura,
ossos quebrados, enfartes, esclerose e suspiros fundos.     

– Sabe de uma coisa, prosador? – Ele me dava o troco. – Nem sempre é destruindo que se edifica, ainda que seja acaciana a afirmativa. Algumas vezes – sei que nem sempre –, algumas vezes pode-se pensar em planejar reformas onde as reformas são possíveis e incluir a esperança onde a esperança é desejável. Nada de fingir reformas para continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes, mas promover mudanças para valer, ditadas por esse fino sentimento chamado idealismo. Será esta esperança utópica? Mas se a utopia é um vício dos poetas e eu a assumo no coração e na mente, porque sou poeta!    

– Por isso um dia foste juiz, outro dia fugiste da Justiça...

Logo que disse estas palavras me arrependi de tê-las dito e pedi desculpa ao meu amigo. Ele me olhou com seu jeito bonachão e ponderou:

– Tens muito que aprender, meu caro... Se pudesses ver, da deusa que nos barrou à porta desta casa, os olhos cobertos pela serpente, certamente os veria brilhando como brasas...

– De ódio? De desprezo?

De impotência, amigo! Uma impotência muda, que chega a ser tocante.

– Data vênia, talvez seja devido a essa impotência que os olhos da deusa estejam vendados para sempre... (Usei o data vênia passando os dedos sobre a minha testa.)

O poeta riu e disse, imprimindo um rumo novo ao nosso colóquio:

Agora é chegado o momento de parar para pensar: devemos pedir permissão à deusa para entrar nesta casa, e ver o que ela tem a revelar a ti, ou da soleira da porta não passamos?

– Passemos... – disse eu. (Ele não ouviu minha resposta e tive de repeti-la).

– Passemos pela porta ou passemos declinando de passá-la? – brincou meu amigo. 

– Passemos declinando de passá-la. Creio que é o melhor a fazer. Para o que, respeitosamente, peço deferimento.

– Deferido está – respondeu o poeta fingindo manuscrever, com os dedos no ar, o deferimento que dava ao meu requerimento.

[Sexta Ilustração Imaginária: à porta de uma velha construção com sacadas avarandadas, o poeta e o discípulo estão parados diante de uma mulher vestida com uma túnica, sentada num banquinho, o queixo apoiado no cabo de um gládio cujo bico toca o chão. Ao seu pé está uma balança de um só prato. Enrolada sobre a cabeça da mulher, cobrindo-lhe os olhos, dormita uma serpente.] 

 

Conto 6

Retornando à vereda pela qual havíamos passado, o poeta virou à direita e eu o acompanhei em rápidas passadas. Magoado com o tratamento que havia recebido da deusa do gládio furibundo, não escondia minha casmurrice.

Depois de transpormos com cuidado algumas pedras escorregadias naquele ponto do caminho, atingimos a boca de um túnel de arbustos entrelaçados e floridos pelo qual penetramos sorvendo a fragrância que impregnava o ar.

O túnel descia em direção ao mar com inclinação pronunciada que apressava nossos passos, apesar das ramagens que deslocavam a coroa de louros que o poeta tinha na cabeça, obrigando-o a ajeitá-la para que não caísse. ­

– Se não fosse uma afronta à tradição eu deixaria esta coroa pendurada na ponta de um desses galhos, onde melhor ficaria como fralda ao vento – disse meu amigo aborrecido.

– Não seria má ideia. Até porque esta coroa de louros te dá um ar de fauno velho, que não combina contigo – mexi com ele.

– Tu sabes muito bem a que tradição me refiro. Além do que, o meu pecado sempre foi o da gula, nunca o da luxúria. – Com o que concordei.

Quando, finalmente, atingimos a saída do túnel, demos num cais de pedras onde se achava ancorada, nas águas da baía de Trapisona, uma barcaça de dois andares.

Um tamanduá amestrado recebia os que a ela chegavam com abraços efusivos e tapinhas nas costas, e a todos fazia entrar na embarcação pela prancha que servia de ponte. Ao ver o laurel que o poeta levava na cabeça, o tamanduá abraçou-o com euforia, numa intimidade forçada que constrangeu meu amigo. Comigo, porém, o festivo recepcionista foi menos escandaloso, limitando-se a um amplexo curto e a alguns ligeiros afagos de passarinho, perpassados no meu rosto.    

– De onde saiu este animal tão bem treinado para o seu ofício? – perguntei ao poeta, assim que pude.   

– Ele faz parte da fauna que habita esta barcaça, formada de tamanduás e de hienas.

– E o que fazem eles a bordo de uma carcaça velha como esta?

– Fazem as leis de Trapisona – disse meu amigo esperando de mim uma reação que de mim não veio.

O poeta me olhou de esguelha e perguntou:

– Ficaste mudo, prosador?    

– Fiquei a medo. Medo do que acabo de ouvir, medo de pensar na espécie de leis que possam sair do bestunto dessas criaturas.

– Nem todo tamanduá é desprezível, nem toda hiena é um ser temível. Há sempre uma exceção em que se possa confiar.

– A ponto de que façam as leis de Trapisona?

Meu amigo coçou o queixo com os dedos de unhas aparadas, e comentou, creio que bancando o advogado do diabo, como muitas vezes pude perceber que ele fazia:      

– Por que não? Lembra-te, meu caríssimo prosador, que tudo é relativo porque, mais cedo ou mais tarde, morreremos todos intoxicados, capitalisticamente.

– Que venham, pois, as leis criadas por tamanduás e hienas ainda que não desejadas pelos puros? – reagi eu.

– As desejadas pelos puros são despiciendas porquanto os puros são limpos de espírito e de propósitos. Podem passar sem a existência delas. Depois, que importância têm as leis das trapisonas do mundo porque é lá no hemisfério norte que mexem os pauzinhos. 

Havíamos transposto o passadio de madeira e entrado no barco que, mesmo retido por amarras aos frades-de-pedra do cais, agitava-se brandamente ao embalo das águas. 

– O mar me causa enjôos – disse o poeta. – Amo-o, me deslumbro com ele, desejo-o para túmulo, mas quando nele navego, tenho vômitos.

Não tive chance de retrucar à observação do meu amigo porque fomos inesperadamente assaltados por uma raposa velha que nos veio receber no tombadilho.

– Bem-vindos a esta augusta barca de leis, insignes visitantes! – disse a raposa. – Não é sempre que a Poesia vem ao nosso encontro. Quando vem, cobrimo-la de encômios e rendemo-nos à sua sublimidade. A barca é vossa.

E fazendo uma mesura em que esteve à beira de raspar o chão com o focinho, deu-nos passagem e deixou-nos realmente à vontade porque nos dispensou da sua rançosa companhia. 

– “Cobrimo-la de encômios e rendemo-nos à sua sublimidade” – repeti com descaso as palavras que ouvira. – Tu não me disseste, poeta, que afora tamanduás e hienas também havia raposas nesta barca.

– Meu querido prosador, as raposas, com a sua solércia nojenta, são a alma desta casa. Tanto estão no plenário, onde tamanduás e hienas deblateram em altas vozes e entre ofensas mútuas os grandes e os insignificantes problemas de Trapisona (sobretudo estes últimos), quanto nos corredores do barco, agindo à sorrelfa, tramando, urdindo e conchavando suas raposices.

– E nós, os cidadãos comuns, como devemos nos sentir diante deste estado de coisas?

– A nós, meu querido amigo, só resta berrar como um bezerro desmamado

– No entanto, pareceu-me que ficaste lisonjeado com o tratamento recebido da raposa – zombei do poeta.

Ele percebeu o meu intento e disse:

– Potocas para os elogios. Potocas muitas! Lembra-te da expressão potoca? Caiu em desuso, porém teve sua época, seu significado ilustrativo – e o poeta encheu a bochecha de ar e nela bateu com a mão fechada, para esvaziá-la com ruído. – Pois potocando te digo: Ah! As pequeninas vaidades pelo ego apetecidas, as tampinhas de garrafa que me colocam no peito, as fitinhas que ornamentam as minhas vestes, os nadas com os quais enfrento a vida.      

Havíamos chegado a um recinto, no segundo andar do barco, onde uma assembleia estava reunida, imersa em debates acalorados. De onde estávamos, eu e o poeta podíamos assistir a tudo e a tudo ouvir sem que fôssemos notados. Um orador na tribuna era aparteado por outro, mas não dava para identificar os partidos a que pertenciam, se ao das hienas ou ao dos tamanduás, o que não fazia nenhuma diferença.

– Vossa Excelência me respeite! – dizia o orador.

– Primeiro, respeite a mim Vossa Excelência, sem as suas insolências! – rebatia o outro.               
Vossa insolência, vossa excelência... – ironizou o poeta. – Esta gente mistifica, desconversa, tergiversa, enquanto alguém, tressuado, no pilão, faz o fubá.

– É triste, muito triste... – disse eu.

– É lamentável... Gostaria de poder transformar em dardo fulminante a coroa de louros que trago na cabeça para matar esse palavrório inócuo e sem sentido. Se me fosse dado este poder, eu, que sou poeta, lavrador de palavras, floricultor de versos, anunciaria urbi et orbi ter matado em pleno vôo a verborragia vazia e inodora da assembleia, num arremesso certeiro. Seria capaz de merecer a taça de ouro do tiro ao alvo... Mas como este dom não me foi dado, tirarei desta assembleia uma proposta de vida...

– Qual é a proposta? – quis saber incrédulo.

O poeta se calou por alguns instantes e depois disse, como se falasse para si mesmo:

Incapaz de grandes obras, me recolho e calo, humilde, limitado e só. E comigo, dentro de mim, sem que possa dar solução a este problema, sem que possa matar as cobras e lagartos que voam pelo ar, afirmo apenas que o canto se cala e vomita todas as entranhas, diante desta fábrica infernal de gente fraca, frente a tão antiga e horrenda hipocrisia.

– Dói-me ouvir estas palavras, mestre (pela primeira vez o chamava como tal). Estamos diante de uma assembleia que tem por trás de si o primado da democracia...

Ele me interrompeu abruptamente: – Nada de evocações greco-romanas... Demagogia só na assembleia! Poupe-me de um ementário histórico que vai bater no Código de Hamurabi e nas Doze Tábuas. Os varões de Plutarco morreram de há muito. Sabes tu, prosador, por que esta casa flutua numa barcaça?

Não foi necessário emitir reposta alguma, pois meu amigo concluiu incisivo:

– Porque é uma casa que se embala sob o efeito das ondas que lhe tocam o casco, ou, melhor dizendo, que lhe tocam os cascos... Portanto...

– Portanto...?

Nada mais a declarar, exceto que os canais da terra enchem-se de sangue, e lágrimas e lamúrias... – Depois, apoiando-se no meu ombro completou: – Para mim é o bastante. Saiamos daqui porque já sinto os engulhos do vômito me aflorar ao esôfago. E que não me surja no caminho o político tarimbado, raposa matreira... Se aparecer o mandarei ao lugar de onde nunca devia ter saído... – E terminou evocando uma frase de sua predileção: – O inferno são os outros.

[Sétima Ilustração Imaginária: poeta e discípulo são recebidos na ponte de uma barcaça por um tamanduá que abraça o poeta enquanto, ao seu lado, o discípulo, com jeito desaprovador, observa a cena.]

 

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