Vitória no tempo das diligências

Luiz Guilherme Santos Neves

Naquele tempo havia diligências em Vitória. Nelas, sempre se embarcava aos domingos, às duas da tarde. O ponto de partida ficava na esquina da Avenida Cleto Nunes com a Avenida República, no Parque Moscoso. Era indispensável que se observasse o horário. Chegar atrasado era perder o lugar. Primeiro porque, naquele tempo, era grande o número de pessoas ansiosas por embarcar; segundo, porque as diligências variavam na capacidade: umas tinham quatro lugares para os passageiros; outras tinham seis. Correspondentemente ao número deles, às vezes eram quatro cavalos, às vezes seis, atrelados à diligência. Sobre a capota, para as malas e trastes a serem transportados, ficava o bagageiro. Na boleia, a céu aberto, exposto às intempéries, assentava-se o cocheiro que, de rédeas na mão, controlava com sapiência a marcha das cavalgaduras. No rastro da carruagem, pelos descampados a perder de vista, subia a poeira formando um rabicho esvoaçante que podia ser divisado de longa distância. Era um convite e um desafio à cupidez dos assaltantes. Olhos espias controlavam o tropel da diligência e davam o aviso que disparava o ataque e a horda de bandidos, disparando tiros à mancheia, sempre montados em cavalos negros, ou de índios ferozes e ululantes cavalgando cavalos em geral malhados, desabavam sobre a diligência para o saque e o morticínio.

O primeiro a tombar era o cocheiro, exposto às intempéries dos disparos. Atingido pelas costas, despencava ao chão muito mais parecendo que dava um pulo para o lado do que caindo mortalmente abatido. Daí em diante, a diligência seguia desenfreada até virar de flanco e ser cercada pelos assaltantes. Dentro dela, quem resistisse ao assalto era infalivelmente morto, enquanto a mocinha – porque naquele tempo sempre havia uma mocinha no banco da diligência – se encolhia de pavor pelos infortúnios que lhe pudessem suceder. Salvo se – o que era praxe no tempo das diligências – não mais do que de repente brotasse do nada um mocinho heroico cavalgando um luzidio cavalo negro ou um napoleônico cavalo branco para salvar, com a bravura de tiros infalíveis contra o inimigo destrambelhado, o que restou da diligência e, desse restolho retirar a mocinha ainda íntegra e intocável, apesar de transida de medo. O que depois iria acontecer entre o cavaleiro e a dama é fácil adivinhar.  

Naquele tempo, era assim com as diligências em Vitória. E quando digo o que digo, digo e mostro os meus trunfos para desfazer incredulidades e sorrisos:

  

***

Digamos que o que acima está escrito equivalha a um dos antigos trailers que, naqueles tempos, eram projetados antes do filme principal. Haja vista que é de cinema que versa e conversa este texto, e, mui particular e gloriosamente, do Cine Politeama, único e autêntico “poeira” que existiu em Vitória. Nele, os filmes de faroeste em preto e branco marcaram época e o Politeama fez história.

E “poeira” foi pela sua arquitetura externa (um barracão coberto de zinco!) e pela sua conformação interna, rústica e desconfortável; pela freguesia humilde que o frequentava (hoje em dia se diria que o Politeama foi exemplo pioneiro de socialização dos menos favorecidos em Vitória); pelo preço módico cobrado para a entrada, sobretudo para as “sessões-colossos” das segundas-feiras à noite, em que se bisavam os filmes passados no domingo. 

Na obra História do Cinema Capixaba, o escritor Fernando Tatagiba transcreve um texto de J.F. Gonçalves Neto com uma perfeita descrição do Politeama: “O casarão imenso, na esquina da Avenida República com a Cleto Nunes, tinha estrutura típica. Pequeno muro de alvenaria em toda volta, sobre o qual se esticavam largas tábuas a pique formando uma parede alta e perigosa. A cobertura era de zinco, num imenso vão livre sob a engradação mais grandiosa que já se viu, feita por mãos de leigos em engenharia. As poucas pilastras eram de fortes mastros de peroba, que sustinham a cumeeira altíssima e as poucas linhas (sic) e pontaletes.”

Eu, que conheci o Politeama por fora, por dentro e pelos filmes de caubóis tendo Tom Mix, Buck Jones, Charles Starret, Tim Holt e Bill Eliot como mocinhos (este último usando dois revólveres invertidos que sacava cruzando os braços sobre a cintura com estonteante rapidez), aplaudo de pé a transcrição. E ainda acrescento migalhas de lembranças.

Internamente, o Politeama era sui generis. As cadeiras individuais, de madeira, ocupavam a parte central diante da tela praticamente sem palco. Na lateral das cadeiras, à direita e à esquerda, e delas separadas por um corredor estreito, ficavam bancos inteiriços com encosto, também de madeira, posicionados numa base mais elevada para os que ali sentados, como era o meu caso, pudessem assistir aos filmes “mais do alto”. Presos nos caibros do teto, ventiladores giravam no verão na vã tentativa de amenizar o calor sufocante.

Na parte de trás ficava a “Geral” em forma de meia ferradura, tipo arquibancada de circo. Quem nela se abancava assistia aos filmes de longe e com a cabeça virada em direção à tela. Para o acesso à Geral pagava-se metade do ingresso normal e a entrada ficava na Avenida Cleto Nunes, ao contrário da porta principal que dava para a Avenida República. Um relógio de parede, no alto da Geral, visível a todos os olhares, recebia fiscalização coletiva. Quando dava a hora da sessão, a gritaria dos presentes nas matinês domingueiras parecia que sacolejava o cinema precedendo a iluminação da tela. 

Creio que o Politeama tenha sido o único cine do mundo com um relógio para que os próprios espectadores acusassem o horário para iniciar a projeção. À gritaria nervosa somava-se o som de uma campainha estridente que confirmava oficialmente que a sessão ia começar.

A projeção dos filmes se fazia de uma cabine de alvenaria que se localizava logo abaixo da Geral. Com o erguer de cabeça era possível ver o facho luminoso que se irradiava para a tela onde as diligências eram perseguidas e assaltadas filme após filme, incansavelmente.  Quando chovia – e não falo de chuvas nas cenas dos filmes, mas das que caíam sobre Vitória – tudo ficava mais dramático sob os aguaceiros batendo ruidosamente no telhado de zinco. Mal se ouvia o som dos tiros pipocando na tela.

Ivan Borgo – um dos mais completos cronistas do Espírito Santo –, referindo-se ao Politeama no texto Telas (in Novas Crônicas de Roberto Mazzini) dá-nos o seguinte flahsback memorial: “Prosaicos baleiros oferecem balas e doces como se fosse possível que eles descessem pela garganta ante a expectativa de assistir dali a pouco o drama de caubói e à série da sessão-colosso das segundas-feiras. A campainha parou de soar. Vai ter início a sessão.”

Pelo visto, a estridência da famosa campainha repercutiu vida afora na memória auditiva de Ivan como na de muitos frequentadores do velho Politeama.

Hoje, passadas tantas décadas, não tenho dúvida de que o Politeama foi, no estrito sentido do termo, o mais democrático dos cinemas de Vitória. Um ceitil a mais cobrado no preço da entrada, fosse ou não nas populares sessões-colossos, redundaria no afastamento do público das suas dependências. Haja vista o que aconteceu com o genial Noel Rosa que, vindo em 1934 em turnê para se apresentar em Vitória, conheceu fracasso total atribuído ao alto preço cobrado para o ingresso no... Politema! (vide Rogério Coimbra, in Noel Rosa em Vitória, site Estação Capixaba).

Da minha parte, acredito que tenha também pesado no insucesso de Noel, e de seus companheiros sambistas, o fato de que o Politeama nasceu para ser cinema, nada mais do que cinema, e não para receber shows artísticos, ainda que contassem com a participação do incomparável criador do “Com que roupa?”

Noel Rosa não seria, portanto, exceção na história da sacolejante diligência que, simbolicamente, o próprio Politeama não deixou de ser!

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